Soou um pi e o mostrador digital contou mais um número vermelho.
Somos nós. Ora bem (olhando a senhora ao seu lado) queremos 2 frangos. Partidos aos bocadinhos, não é, avó?
A senhora, pequenina e magnânima na sua simplicidade, acenou um sim silencioso. Não falava e parecia deslocar-se sem precisar de mexer qualquer parte do corpo. A serenidade tinha raízes naquele ser humano e, com atenção, era possível vê-la a estender os ramos viçosos para os que a rodeavam. O sorriso era o do neto. Embora menos entusiástico, exalava a mesma doçura.
O rapaz, na idade das saídas nocturnas, dos jogos, das aparências e das raparigas, aparecia como personagem errado no enredo certo. Era com deleite que dizia nós. Dirigia à avó perguntas inúteis (a utilidade fora-se-lhes assim que ele lhes adivinhara as respostas) com o orgulho vaidoso de quem deseja ser visto ao lado de um mito.
Naquele momento, naquele talho, todos os que esperavam a vez (e mesmo aqueles cujas vontades carnais estavam já de saída) invejaram secretamente a simplicidade feliz dos outros dois.
Uns pronunciaram em surdina, com a boca cheia de orgulho, avó.
Outros, fizeram-se serenos e fingiram ser. Só.
Do fundo do conto
"não me perguntes quem sou. não me perguntes nada. eu não sei responder a todas as perguntas do mundo. pousa os lábios sobre a página. devagar,muito devagar. vamos beijar-nos."
domingo, fevereiro 12, 2012
Avó
segunda-feira, outubro 17, 2011
Boa noite
Respirou profundamente e marcou o número antes que a hesitação a paralisasse. A compaixão e a empatia existiam nela como um perfume, agradável aos outros mas que já não sentia. Mais do que acreditar, sabia da esdrúxula força que é o Bem e esse fardo toldava-lhe agora o julgamento sobre aquele impetuoso telefonema.
O toque ritmado não se demorou e uma voz determinada rapidamente se assomou à linha. Não deixou que o interlocutor terminasse. A queda de palavras interrompeu-o abruptamente, fresca, límpida, serpenteando em volta do seu sorriso.
Vivi hoje um dia esplendoroso. Ri, cantei, dancei e fui feliz como se neste dia se tivessem comprimido todas as gotas de tempo de todos os dias que me restam. Morresse eu amanhã e teria vivido o suficiente. A todos os seres humanos já foi dado viver, pelo menos, um momento de felicidade. Queria pedir-lhe que não se esquecesse disso e que vivesse uma boa noite.
Desligou. Do outro lado, sobre as inúmeras secretárias, toque após toque, a noite prosseguiu, indolente. Só um imponente sorriso vibrava pela linha, chamada após chamada
112, boa noite.
segunda-feira, setembro 19, 2011
Interior
Envergonhavam-na as roupas repetidas, o cabelo infantilmente penteado, as refeições velozes e amadoras.
Agora que sabia contar, sabia que, com sete anos, devia multiplicar-se como mãe da irmã de cinco e subtrair os dois pais incertos a quem se somavam incontáveis embriaguezes.
De manhã, à abelhuda e repetida questão da auxiliar sobre o pequeno-almoço, respondia com a mais insondável imaginação e apetite. Adivinhava as abundantes refeições matinais dos colegas e, no falar e no pensar, degustava-as com a irmã. A mais pequena, de espírito ainda alheio às traquinices do ego, negava com vibrante indignação.
Croissant com queijo e leite com chocolate? Mas nós nem jantámos, mentirosa!
Ela fincava convicção e fartura e era só a mais pequena quem inaugurava o estômago.
Nos dias de natação, fingia medo da piscina com a irmã por vergonha do banho. Não era a nudez que a incomodava mas o momento que o sucedia. A mesma cor, o mesmo odor.
A mesma roupa interior.
Um dia, soube da mais nova já no duche do temido balneário. Fintara a irmã e, já nua, já contente, já chapinhante, gritava que as educadoras lhe iam dar umas cuecas lavadas. Envergonhou-se.
No dia seguinte, entrou na escola triunfante. A saia amarela destoava do vermelho da camisola de lã mas, em propositadas ondulações, deixava à vista umas orgulhosas cuecas lavadas. Numa corajosa incursão nocturna, driblara o bafiento hálito dos pais e encontrara a caixa de cartão onde a negligência fazia as suas roupas reféns.
O merecido prémio que envergava permaneceu durante dias, teimoso, até ter a mesma cor, o mesmo odor.
Até ser a mesma roupa interior.
segunda-feira, setembro 05, 2011
Rainha
Deitada na cama, empurrou o cobertor e deixou a descoberto o corpo vazio. Olhou, demoradamente e sem pena, mãos, pés, pernas, mamas, braços descarnados que não eram seus. Abandonada a guerra que travava há dois, dez, cem anos, era só paz o que vestia.
Ligou à amiga de sempre. Sempre suave, sempre quente, despediu-se com um até sempre, Aurora.
Ligou aos filhos. Chamou-os. Riu com as suas lágrimas e pediu, menos por vaidade do que por piedade da dor deles, que a fizessem bonita. Sorriu sempre, com o sol que trazia no peito. Quis beijos de boa noite. E a noite chegou.
Deitada no longo carro negro, partiu para a terra onde começou. Ia a meio o caminho quando a viatura falhou. Negro o carro, negro o fumo, negro o espírito dos que o seguiam. O filho, entendido nas artes da mecânica como nas artes do amor, quis conduzi-lo apesar da relutância do negro condutor. Sem mais quebras, a máquina deslizou até ao destino.
Foi muito sussurrada a engenhosa habilidade do rapaz mas, adormecida, ela sabia que, de estranheza, o episódio teve só o que de estranho tem o amor.
quarta-feira, agosto 10, 2011
Só
Depois de uma noite que existiu por
dias
meses
anos,
abriu as cortinas e a luz entrou
na sala
na mente
na alma
Amontoou na mochila
roupas
forças
vontade
e saiu. Não sabia onde ela estava. Mas acreditava. Encontraria
O dia
O lugar
O sentido
onde paira o fim da órbita escrita pela história dos dois para, de regresso ao começo, serem
ele
ela.
Só.
terça-feira, agosto 02, 2011
Uniões
A mesa era longa de gente e de afectos. Comiam-se histórias de feitos passados, bebiam-se piadas e discussões e nos ventres de cada um soavam gargalhadas digestivas. Assim são as reuniões que se fazem esperar. Da ansiedade ou falta dela nasce o desejo maior de querer e ser querido, de ouvir e ser ouvido.
Unidos por laços ditados pela genética, pela circunstância ou pela afinidade, os convivas brindavam, como brindam as pessoas alegres.
Ela entrou, suave. Não falou. Não sorriu. Não fosse a extraordinária força da sua simples presença e todos se teriam alheado daquela entrada, como de outros vaivéns decorridos na sala.
Apagaram-se as conversas, os sorrisos e o marulhar de copos e talheres. Fosse dia e ter-se-ia apagado o Sol também. Ninguém precisou de olhar para saber que, ao lado dela, na longa mesa de gente e afectos, tomou assento o peso negro e silencioso da ausência que nunca ali deixou de se fazer sentir.
segunda-feira, maio 09, 2011
Marés
Houvesse mais mar dentro dele e mais profundamente ela mergulharia. De tão abandonado mergulho, afundou-se na sua alma azul e, ondulada, fez-se mar.
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