segunda-feira, agosto 30, 2010

Costuras

Está lá fora um homem que quer falar consigo. Deve ser para pedir dinheiro.

Os olhos tristes mas ávidos, absorventes. As roupas gastas, gasta também a pele manchada, o tom, a expressão, o cheiro. O chapéu, que as mãos envergonhadas escondiam, protegem a pélvis num jeito defensivo de ser subserviente.

Não damos esmolas.

O tom seco, de ataque, feriu o homem na dignidade, falhando, por pouco, o orgulho. Engoliu a saliva amarga, olhou o chão de madeira reluzente. O tempo para se recompor foi, na estratégia apressada da mulher, raciocínio lento.

Ando à procura de trabalho. Sou costureiro.

O golpe de surpresa que atingiu a interlocutora causou uma gargalhada, contida a custo num esgar sobranceiro.

Aqui somos todas costureiras!

A guerra perdida assim, num golpe desleal, sem retaliação.

No dia seguinte, um vestido amanhecia pendurado na porta. Perfeito no toque, na cor, na confecção, no esplendor, nas medidas da mulher vencedora. 

Sem fecho, sem botões, um vestido que não se podia vestir.

sexta-feira, agosto 13, 2010

Desejo

Cantaram os parabéns à menina em várias línguas, como poliglotas que eram em idiomas inventados de palreios, trejeitos, caretas e gargalhadas.

Eram tantos e tantos. Eram os frutos de um amor ancestral e os seus amores e os seus próprios frutos, alguns já com amores e frutos também, tal era o sucesso da combinação da tepidez destes e da frescura daqueles.

Chamavam-lhes família, por inerência de laços, mas eram mais uma tribo, espalhados que estavam pelo mundo, ou por parte dele.

As palmas sobrepunham-se aos eh's, uma e outra vez, com pretensos sotaques idiomáticos, felicitando os seis anos da menina que, reticente primeiro, determinada depois, trincou a vela cor-de-rosa, inocente superstição que um produtor de cera, também ancestral, também divertido, terá inventado.

Pede um desejo!

As vozes erguiam-se em pedidos ansiosos, quase imperativos, como se o desejo da criança fosse aparecer ali mesmo, de repente, diante dos seus olhos, desfeita a nuvem de fumo e o puuufff, reconhecida onomatopeia infantil.

A menina fecha os olhos (todas as crianças sabem que é ritual obrigatório no pedido) e logo os abre, sorridente.

O que pediste?

A mãe, instigadora de revelações, não tarda a ser vaiada pela curiosidade violadora da privacidade infantil e é num murmúrio envergonhado e ternurento de pequeno deus que explica.

Se eu não souber, não o posso tornar realidade.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Gelo

O médico deu-lhe a notícia sombriamente, numa qualquer manhã soalheira de Julho que a entranhou de Inverno. Não teve medo de morrer, não pensou em tudo o que ainda queria fazer, não sentiu pena de si própria.

A mãe.

A mãe teria medo que ela morresse. A mãe pensaria em tudo o que ainda queria fazer com ela. A mãe teria pena de não morrer na sua vez.

Deixou o carro no parque do hospital e foi a pé até casa, pensativa, molhada por todas as pequenas gotas que o tempo deixava cair de si próprio.

Ia chegar a casa, preparar um chocolate quente, ligar à mãe para que viesse e esperá-la à janela, vendo cair todos os pequenos flocos de neve que mais ninguém via.

Tudo isso aconteceu, dentro de si, a caminho de casa. Mas, por fora, era o seu portão, o seu jardim, a mãe de joelhos,

um sorriso-verão de mãe-terra.

Oh, já chegaste. Queria fazer-te uma surpresa, arranjar-te as rosas, deixar-te o jardim bonito. 

A mãe, notando qualquer sombra no rosto da filha, franziu o sobrolho, sulcando na testa uma ruga vertical, um abismo de pressentimento temeroso que nunca mais a deixou.

Ela sorriu, já Outono, e ajoelhou-se Primavera, para a tranquilizar. 

Não é nada. 

Cancro é palavra-gelo para o coração quente de uma mãe.

quinta-feira, agosto 05, 2010

O colar

Quando chegou, bem cedo, para abrir a ourivesaria, havia um senhor de cabelo cor-de-gelo tão encostado à montra que parecia conseguir transpor as barreiras de grades e vidro, quase líquidas face àquela atenção tão ávida.

Esse colar é uma beleza, não é?

De tão sumido naquele momentâneo epicentro do seu mundo, o velho estremeceu. (Abalos de homem também acontecem.) Ergueu a boina, inclinou a cabeça e sorriu, culposo, um daqueles sorrisos envergonhados e frescos, perfeitos na sua sinestesia distraída.

Desculpe. Não o vi chegar. Sim, é tão bonito. Todas as manhãs páro para o ver, para ver se ainda está, se ainda ninguém o levou, coitado. 

Porque não o leva o senhor?

Para a minha neta, sim. É menina que merece. E que bem lhe ia ficar na pele morena. Mas não, na volta não quer, não é ao gosto. 

Falava em voz alta mas era para si próprio que o fazia, num monólogo que devia mais à persuasão que à velhice. Ergueu a boina, inclinou a cabeça e sorriu um sorriso de despedida, de obrigada e bom dia, ou vice-versa, coube ao ourives entender.

Ao entrar na padaria, mesmo ao lado, para comprar o pão, agitou no bolso, tristemente, a moeda de um euro que trazia.