quinta-feira, dezembro 30, 2010

Quadro

Nunca se interessara por pintura ou escultura e, no geral, tinha uma certa aversão à palavra exposição. Soava a tédio unilateral, desinteressante, sem envolvência. Acabara perdida naquela mais por falta de propósito do que por intenção, arrastada pelas amigas apreciadoras e entendidas.

Caminhava frente aos quadros, desatenta, alheada, quase insolente. Um pouco atrás do grupo, desfilava indiferente aos comentários entusiasmados, às exclamações de aprovação e aos esgares de repúdio. Foi então que uma qualquer forma atípica de magnetismo lhe atraiu o olhar para a pintura.

Azul.
Azul.
Azul.

O mar azul, a ilha azul, azul o céu também. Eram as sombras que definiam os limites no azul forte e vivo que inundava toda a pintura. Cenário de tempestade, de naufrágio, de noite cerrada que tenta amanhecer.

Sentiu uma atracção quase doentia pelo quadro e, mergulhada num torpor hipnótico

Quanto custa?

À estupefacção volteada das amigas sobrepôs-se o valor. Assustador, desmedido, imenso. À falta de fonte de tais rendimentos, passados alguns meses, esqueceu quadro e paixão.


Quando, anos mais tarde, a terrível notícia lhe chegou aos olhos, era o quadro vivo à sua frente. Cenário de tempestade, de naufrágio, de noite cerrada que tenta amanhecer. A onda abateu-se também, invencível, sobre ela e também ela desapareceu. Nunca um quadro custara semelhante valor.

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Bailarina

A culpa é um líquido viscoso que se cola ao interior do corpo e se deixa ficar, parasita intocável de alegria e dignidade.

A caneta interrompeu-se no papel para logo recomeçar, mais abaixo, dançante de traços curvilíneos que descem e sobem e rodopiam, linhas que esticam e encolhem num bailado ensaiado que ela própria coreografava.

Que bonito desenho. 

Ele, enfermeiro de corpos doentes e almas magoadas, respondeu ao teimoso silêncio instalado como se não tivesse percebido a sua presença peçonhenta. 

Porquê uma bailarina?

Na face dela, franziram-se olhos, pestanas, sobrancelhas, numa manifestação unânime de fúria perante a intrusão. Manteve-se, no entanto, em silêncio.

Danças?

A pergunta, percebida como ataque a soldado ferido, incendiou a sua fúria vulcânica e foi com ímpeto que as palavras irromperam, tortuosas e velozes, da gruta silenciosa que a boca fora por tanto tempo.

Se eu danço? Parece-lhe? Vejo que tem olhos e não sei para que os usa mas não será, certamente, para ver. Meta-se na sua vida e faça o seu trabalho.

A voz, por falta de uso, nasceu grave e rouca, dissonante da sua juventude e fragilidade. Ele, surpreso por um só segundo, nada disse. Colheu-a pela cintura, enlaçou-a e não mais a largou durante a música que só naquele quarto do hospital se fez ouvir. Rodopiaram para longe, para cenários quentes e alegres de bailarinos de voltas perfeitas. Ninguém sabe ao certo quanto tempo durou ou se, de facto, aconteceu mas, quando a bailarina voltou à cadeira de rodas, a alma ,ainda dançante, esqueceu que alguma vez havia lá estado.

segunda-feira, novembro 29, 2010

Fotografia

Conhecia-a assim. Sorridente, serena, tão pequena que cabia nas molduras de 15x10 espalhadas pela casa.

A Mãe.

Conhecia-lhe a história também. A avó repetia que trabalhava por um mundo melhor. Cantou-lho em canções de embalar, em canções de banho, em canções de pequeno-almoço de sopas de leite. Inventou histórias em que a Mãe era heroína e o mundo melhorava, de facto, quando lhe aconchegava os cobertores ou, antes ainda, quando as suas pálpebras pequenas cediam perante uma façanha tão grande.

Recebia postais esporádicos, que a avó lhe lia repetidamente, emocionada, mesmo quando ele já dormia. O conteúdo era carinhoso, aconchegante, mas aos seus ouvidos infantis soava sempre distante, voz sépia de fotografia a cores.

Quando cresceu o suficiente para frequentar a escola e percebeu que todas as outras crianças tinham a mãe no lugar onde ele guardava a avó, reservou-lhe um certo rancor. Não entendia que um mundo melhor pudesse ser aquele em que ele não tinha mãe.

Exigiu vê-la. Recusou-se a comer as sopas de leite pela manhã e fechou a boca a qualquer outra tentativa criativa da avó. A luta durou alguns dias até que a mulher, mais preocupada que esgotada, cedeu. Ouviu-a ao telefone. Pedia desculpa num lamento sussurrado. Não prestou atenção porque imaginava, com ansiedade, já sem fome, o colo da mãe, alta, corajosa, heroína de um mundo melhor.

Quando saíram de casa, o frio cortante da madrugada parecia entristecer mais os olhos tristes da avó, escondida sob o lenço branco que trazia à cabeça. Quando o carro parou, viu uma casa grande, guardada por muitos polícias, tal era a importância de quem ali trabalhava. Foram revistados, não fossem levar armas que magoassem quem constrói um mundo melhor. Não percebeu porque os fecharam numa divisão de grades de ferro, juntamente com outros visitantes, antes de os empurrarem para uma grande sala com mesas corridas. Uma sala

Triste

Suja

Cinzenta.

Quando viu a mulher da foto sentada numa mesa ao fundo, pequena, encolhida, de olhos tristes como os da avó, fechou os seus olhos com força e pediu baixinho sopas de leite.

quarta-feira, novembro 17, 2010

Cão

Ninguém percebia ao certo porque é que ele tinha escolhido aquele cão.

O animal, coxo, de pêlo baço e olhos permanentemente remelados, arrastava-se a si e aos seus muitos anos caninos nos curtos e dolorosos passeios nocturnos, cada vez mais dolorosos, cada vez mais curtos.

Ele próprio, ainda jovem, ainda sonhador de mundos perfeitos, não percebia porque é que, naquela bafienta manhã passada no canil, havia insistido em levar para casa o Cão, a despeito de todas as tentativas da responsável para o dissuadir. Era uma química irracional a que os unia (se é que as há racionais). Ele não percebia de velhice, o Cão já não recordava a juventude, e assim se acompanhavam, um pé e uma pata em cada mundo.

Numa manhã de Inverno, o porteiro encontrou-o na rua, à porta do prédio.

Nu. Gelado. Sem sentidos.

O homem levou o rapaz para casa, deitou-o, procurou cobertores que lhe cobrissem o tom azulado da tez, botijas de água quente que lhe devolvessem os pés ao chão.

O Cão, coxo, remeloso, arrastado, mas sobretudo velho, lançou-se sobre o corpo inerte e, naquela manhã bafienta, deixou-se ficar e devolveu-lhe todo o calor acumulado desde a saída do canil.

Quando despertou, outra vez quente, outra vez jovem, deixou de acreditar em mundos perfeitos. Era o Cão quem jazia inerte, agora, cumprido o mais humano dos desígnios.

domingo, novembro 07, 2010

Sem saída

Deitada, como sempre estava, sentiu o cheiro familiar da cebola a dourar no azeite. Ouvia a filha cantarolar uma qualquer melodia inventada enquanto o sol se punha, preguiçoso.

Quis voltar-se na cama, mas não a chamou. Doía-lhe aquela dependência esmagadora de amor-próprio, aquele lento desgaste de dignidade. O cantar aliterado era reconfortante. Fechava os olhos e era ela quem cantava, cozinhava e geria uma casa de sete. Era ela quem voltava os filhos na cama, quem supria as suas necessidades infantis.

Acordou da fantasia, velho traste imóvel, com o bater exacerbado da porta. Aquele bater de porta que dissolvia cheiros, sons e sabores. A cantoria parou e logo um silêncio atemorizado, nauseante.

Não tardou a ouvir o grito masculino, mote viril de um poder cobarde que se alimenta de vida e alegria. Não voltou a ouvir a voz límpida da filha até que o som de uma bofetada se impôs, eco repetido de um pesadelo real. Um pequeno grito, agora abafado, tímido, já não límpido, já não cantarolado.

Não gritou também ela, não chorou. Encolheu-se mais nos lençóis e rezou baixinho à morte, para que chegasse depressa.

quarta-feira, outubro 20, 2010

Diferenças

O seu filho é diferente.

Um qualquer líquido frio, viscoso, transparente demorou-se no topo da sua cabeça para logo descer, insolente vulcão, até aos pés. Era uma tristeza dominadora, daquelas que subjuga e faz  todas as memórias felizes reféns de um assalto escuro e silencioso. Olhou o filho.

Sentado à pequena mesa colorida do hospital, era uma criança normal. Os lápis eram iguais aos das outras crianças, as cores as mesmas, os traços idênticos. E aquele médico

O seu filho é diferente.

Diferente seria a ausência de amigos na escola, o silêncio opressivo face a um cumprimento ou pergunta, a insistência inabalável em brincar com os dinossauros, sempre e só com os dinossauros, a reticência atemorizada em trocar o pijama azul, já curto para pernas e braços, já fino demais para aquecer, já não azul. 

O médico continuava a explicação, lançando palavras no abismo para onde as palavras caem quando ninguém as quer. A sua vontade era de trocar de papéis com o filho, deixar que ele assumisse os seus sapatos 40, as suas responsabilidades de crescido, deixar que ele lhe dissesse, ao seu eu criança, que tudo vai correr bem, que este médico é um pesadelo e que não tarda vamos acordar confortáveis e protegidos dentro do pijama azul.

Diferente pode ser bom, não é, filho?

Foi a única frase, oca, vazia, inútil, que o seu cérebro lhe enviou, também ele oco, vazio e inútil por aqueles momentos.

Ignorando a interpelação do médico, como havia feito com todas as anteriores, anulando-o do quadro hospitalar, a criança levantou-se e, oferecendo a pequena mão à mão inerte do pai

Diferente é diferente. Só.

domingo, outubro 10, 2010

Insónia

Quando entrou na sala de jantar não notou os três funcionários que, no balcão, cochichavam sobre os estranhos hábitos daquele hóspede que não dormia.

Pediu a refeição, que deglutiu sozinho, sem prazer, demoradamente, ignorando a deixa da criada do hotel no outro extremo da sala.

Há meses que é assim. Quando chego ao quarto, a cama está sempre feita, como no primeiro dia. Tenho a certeza que o homem não dorme. 

Talvez isso seja costume na Europa. 

A ignorância do comentário do jovem bagageiro, embora com ligeireza, não tardou a ser punida pelo gerente do hotel com uma palmada na nuca, palmada de muito génio ou prática, tendo em conta a força da referida e a ausência de ruído.

Não sejas estúpido. Todos os seres humanos precisam de dormir, seja aqui ou em qualquer outra parte do mundo.

A declaração foi sentenciosa e mais ninguém se pronunciou relativamente ao tema, não por convencimento mas por respeito ao poder silenciador da autoridade patronal. Mas foi o próprio gerente que, com mais atenção ao hóspede do que a que é devida ao zelo do cargo, rompeu o frágil silêncio nómada.

E o homem continua a pedir os dois cafés!

Assim era. Pediu, como todos os dias, ao almoço e ao jantar, dois cafés. Aquele era, na realidade, o único tomo da refeição de que desfrutava. Sorvia o líquido quente longamente, saboreando a fluidez, a suavidade, a sagacidade do percurso traçado dentro de si e, quando terminava, havia sempre um segundo café esperando-o, como uma lembrança revivida do primeiro.

Será do café que não dorme. Ou do calor da ilha. Não deve estar habituado.

Assim se retirou o gerente, determinando o seu próprio final para uma história que o intrigava mas não incomodava.

Notando a liberdade dessa ausência, o rapaz, num ímpeto mais devido ao seu carácter do que à sua idade, e opondo-se à fraca resistência curiosa da colega, aproximou-se da mesa e fez a pergunta que nunca tinha sido feita.

O homem respirou fundo como quem se livra de um peso que não é de bagagens de hotel e contou, sem interrupções, a noite em que pousou a cabeça no volante do seu carro e fechou os olhos à rapariga que se atravessava à sua frente.

segunda-feira, setembro 27, 2010

Mesa

Passava pouco do meio-dia quando a senhora entrou. Apesar da grande disponibilidade de mesas, não parou para esperar que alguém a encaminhasse nem pareceu dedicar qualquer pensamento à escolha do sítio ideal. Sentou-se na mesa mais próxima da porta, como quem não tem tempo a perder em inúteis viagens entre porta e mesa, mesa e porta. Quando a empregada de mesa se aproximou para deixar o menu, não a deixou sequer pousá-lo e, sem soerguer o olhar,

Quero empadão de carne, por favor.

A rapariga, desequilibrada entre a força da decisão e a estranheza do pedido, fez da educação malabarismo.

Lamento muito, minha senhora, mas empadão não temos. Mas posso recomendar... 

A frase ficou suspensa, suspenso o som, a expressão, a admiração da rapariga.

Quero empadão de carne, por favor. 

Sem sobressalto, sem o costumado tom azedo da reclamação, da sugestão obrigatória, da opinião desnecessária. Com o mesmo tom sereno de quem, pela primeira vez, materializa em palavras o prato que leva na imaginação.

Vou ver com a cozinha o que se pode fazer.

E foi. A bandeja encheu-se de pratos para outras bocas entretanto chegadas e a expressão de desprezo do cozinheiro face ao pedido especial pareceu ditar o destino da refeição da senhora. Enquanto se encaminhava para a mesa, treinando, a cada passo, a melhor tradução para a expressão do cozinheiro, observou-a. A senhora teria já alguma idade mas era uma idade cuidada. Os lábios pintados num tom discreto, o colar redondo pousado sobre o peito tapado, o cabelo avolumado de rolos e secadores.

Ainda bem que alguém me atende. Quero empadão de carne, por favor.

O pasmo da rapariga não terá durado mais do que alguns segundos, ainda que longos.

Olhe minha senhora, eu não posso ser mais rápida do que sou e, como já lhe disse, não temos empadão e o chefe de cozinha também não o pode estar a fazer agora, entendeu?

Não terá entendido.

Quero empadão de carne, por favor. 

A paciência da rapariga esgotara-se e a sua indignação crescia dentro da efémera bolha da educação quando uma exclamação a interrompeu.

Mãe! Andamos todos à sua procura!

E, reparando na rapariga,

Eu peço desculpa. A minha mãe tem um problema... 

Apontando discretamente a própria cabeça, entristecendo o olhar, esboçou um hercúleo sorriso. Uma sensação quente percorreu a memória da rapariga.


Não tem problema nenhum. Se puder esperar, eu reponho o segundo prato na mesa e, enquanto conversam, fica pronto o empadão.

quinta-feira, setembro 23, 2010

Palhaço

O sol pingava, macio, na sua cara maquilhada e ele sorria, divertido, cómico,

Apalhaçado.

As gargalhadas que provocava estendiam-se pela perpendicularidade simpática da avenida, fosse pela ternura dos jactos de água cuspidos por flores de natureza felpuda, fosse pela empática gravidade da força que insistia em levar ao chão as calças balofas.

As piadas alinhavam-se em fila indiana, como as crianças, e ele distribuia-as por quem passava mesmo por baixo do seu nariz vermelho. Assim era há tempo suficiente e ele gostava que assim fosse.

Atrás da infantil multidão que o coroava, vislumbrou a filha, os seus caracóis de canela, a sua pele alva. Mas não os olhos grandes, amendoados (iam pousados no chão, como as suas calças balofas). Não o seu sorriso de mel (ia escondido, como o seu jacto de água).


Olha Mariana, é o teu pai!

O menino apontava, divertido, crueldade própria da empatia infantil.


Não, não é. É só um palhaço. 

Desapareceram por entre cabeças igualmente pequenas, igualmente indistintas, diferentes só na vergonha.

Essa noite, não houve água, creme ou loção que removesse a profundidade da maquilhagem, a intensidade do desgosto. Ficaria, para sempre, palhaço.

sábado, setembro 18, 2010

Singular

Não foi uma paixão à primeira vista, porque a vista não é dada a projectos sentimentais tal como o coração não tem pretensões de ver. Foi uma simpatia, uma empatia, um ímpeto que esvazia a mente.

Ela falava e ele sorria pelas palavras (dela) que via, coloridas, a pairar no ar.

Tens umas manchas no cabelo.

Foi dito de forma desinteressada, sem outros fins que não os de produzir som e demonstrar os seus dotes observadores. Nos ouvidos dele, porém, soou o apontar de uma falha, de um defeito que podia corrigir.

As duas manchas brancas eram, desde o berço, salpicos de originalidade, marcas de uma identidade criativa.

É para pintar.

No cabeleireiro, distraídos das singularidades daquele cabelo, fez-se a vontade de cliente para o encontro dessa noite chuvosa.

Ela, ao longe, sob um guarda-chuva que cedia a rugidos de tempestade, procurava as manchas brancas sem as encontrar. Ele, abrigado num alpendre improvisado, esperava vê-la passar. Desencontraram-se.

Semanas, meses, anos passaram e os cabelos brancos, assim negados, nunca mais voltaram a existir.

segunda-feira, agosto 30, 2010

Costuras

Está lá fora um homem que quer falar consigo. Deve ser para pedir dinheiro.

Os olhos tristes mas ávidos, absorventes. As roupas gastas, gasta também a pele manchada, o tom, a expressão, o cheiro. O chapéu, que as mãos envergonhadas escondiam, protegem a pélvis num jeito defensivo de ser subserviente.

Não damos esmolas.

O tom seco, de ataque, feriu o homem na dignidade, falhando, por pouco, o orgulho. Engoliu a saliva amarga, olhou o chão de madeira reluzente. O tempo para se recompor foi, na estratégia apressada da mulher, raciocínio lento.

Ando à procura de trabalho. Sou costureiro.

O golpe de surpresa que atingiu a interlocutora causou uma gargalhada, contida a custo num esgar sobranceiro.

Aqui somos todas costureiras!

A guerra perdida assim, num golpe desleal, sem retaliação.

No dia seguinte, um vestido amanhecia pendurado na porta. Perfeito no toque, na cor, na confecção, no esplendor, nas medidas da mulher vencedora. 

Sem fecho, sem botões, um vestido que não se podia vestir.

sexta-feira, agosto 13, 2010

Desejo

Cantaram os parabéns à menina em várias línguas, como poliglotas que eram em idiomas inventados de palreios, trejeitos, caretas e gargalhadas.

Eram tantos e tantos. Eram os frutos de um amor ancestral e os seus amores e os seus próprios frutos, alguns já com amores e frutos também, tal era o sucesso da combinação da tepidez destes e da frescura daqueles.

Chamavam-lhes família, por inerência de laços, mas eram mais uma tribo, espalhados que estavam pelo mundo, ou por parte dele.

As palmas sobrepunham-se aos eh's, uma e outra vez, com pretensos sotaques idiomáticos, felicitando os seis anos da menina que, reticente primeiro, determinada depois, trincou a vela cor-de-rosa, inocente superstição que um produtor de cera, também ancestral, também divertido, terá inventado.

Pede um desejo!

As vozes erguiam-se em pedidos ansiosos, quase imperativos, como se o desejo da criança fosse aparecer ali mesmo, de repente, diante dos seus olhos, desfeita a nuvem de fumo e o puuufff, reconhecida onomatopeia infantil.

A menina fecha os olhos (todas as crianças sabem que é ritual obrigatório no pedido) e logo os abre, sorridente.

O que pediste?

A mãe, instigadora de revelações, não tarda a ser vaiada pela curiosidade violadora da privacidade infantil e é num murmúrio envergonhado e ternurento de pequeno deus que explica.

Se eu não souber, não o posso tornar realidade.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Gelo

O médico deu-lhe a notícia sombriamente, numa qualquer manhã soalheira de Julho que a entranhou de Inverno. Não teve medo de morrer, não pensou em tudo o que ainda queria fazer, não sentiu pena de si própria.

A mãe.

A mãe teria medo que ela morresse. A mãe pensaria em tudo o que ainda queria fazer com ela. A mãe teria pena de não morrer na sua vez.

Deixou o carro no parque do hospital e foi a pé até casa, pensativa, molhada por todas as pequenas gotas que o tempo deixava cair de si próprio.

Ia chegar a casa, preparar um chocolate quente, ligar à mãe para que viesse e esperá-la à janela, vendo cair todos os pequenos flocos de neve que mais ninguém via.

Tudo isso aconteceu, dentro de si, a caminho de casa. Mas, por fora, era o seu portão, o seu jardim, a mãe de joelhos,

um sorriso-verão de mãe-terra.

Oh, já chegaste. Queria fazer-te uma surpresa, arranjar-te as rosas, deixar-te o jardim bonito. 

A mãe, notando qualquer sombra no rosto da filha, franziu o sobrolho, sulcando na testa uma ruga vertical, um abismo de pressentimento temeroso que nunca mais a deixou.

Ela sorriu, já Outono, e ajoelhou-se Primavera, para a tranquilizar. 

Não é nada. 

Cancro é palavra-gelo para o coração quente de uma mãe.

quinta-feira, agosto 05, 2010

O colar

Quando chegou, bem cedo, para abrir a ourivesaria, havia um senhor de cabelo cor-de-gelo tão encostado à montra que parecia conseguir transpor as barreiras de grades e vidro, quase líquidas face àquela atenção tão ávida.

Esse colar é uma beleza, não é?

De tão sumido naquele momentâneo epicentro do seu mundo, o velho estremeceu. (Abalos de homem também acontecem.) Ergueu a boina, inclinou a cabeça e sorriu, culposo, um daqueles sorrisos envergonhados e frescos, perfeitos na sua sinestesia distraída.

Desculpe. Não o vi chegar. Sim, é tão bonito. Todas as manhãs páro para o ver, para ver se ainda está, se ainda ninguém o levou, coitado. 

Porque não o leva o senhor?

Para a minha neta, sim. É menina que merece. E que bem lhe ia ficar na pele morena. Mas não, na volta não quer, não é ao gosto. 

Falava em voz alta mas era para si próprio que o fazia, num monólogo que devia mais à persuasão que à velhice. Ergueu a boina, inclinou a cabeça e sorriu um sorriso de despedida, de obrigada e bom dia, ou vice-versa, coube ao ourives entender.

Ao entrar na padaria, mesmo ao lado, para comprar o pão, agitou no bolso, tristemente, a moeda de um euro que trazia.

terça-feira, julho 27, 2010

Sentido

Temos que ir comprar o aparelho. 

Dizia que sim, sempre que sim. Às vezes fingia mesmo não ouvir, afinal era essa a abstracta deficiência a que o dito aparelho vinha acudir. Olhava a mulher, ainda tão bonita, ainda tão cheia daquela magia das mulheres bonitas, sem que ela reparasse, perdida em mil e um procedimentos tão quotidianos quanto inúteis, em tempo disfarçado de pressa. Ele, ainda tão encantado, ainda tão cheio do enlevo dos homens encantados por uma mulher bonita.

Vamos comprar o aparelho.

Foi ele quem lhe disse desta vez. Não porque tivesse finalmente percebido a sua derradeira utilidade, não porque sentisse a falta da audição límpida como dantes, não porque estivesse cansado de ouvir a frase já erodida. Fizera-o pelo mesmo motivo que o movera nos últimos quarenta anos. Pela tranquilidade dela. Pelo amor a ela. Por ela.

Saíram da loja. Ela, feliz, bonita, ancorada ao seu braço, sorria como um navio que chega a bom porto. Ele, feliz também, bonito por estar com ela, desligou subtilmente o pequeno botão do aparelho. O que ouvia chegava perfeitamente. Ela era, na realidade, tudo aquilo de que os seus sentidos precisavam.

sexta-feira, julho 23, 2010

De fadas

O Sol já se deitava no oceano mas o calor ainda era peganhento, húmido, quase pantanoso. O peditório era voluntário, sim, mas era inevitável a cada um dos presentes, de latinha a tiracolo e autocolantes na mão, sentir aquele incómodo molhado de quem foi ininterruptamente lambido por um qualquer, ainda que amigável e bem-intencionado, ser canino.

Quando o miúdo passou, absorto no conteúdo monetário da própria mão, perdido em somas, divisões e provas-dos-nove, ela decidiu abordá-lo, divertida.

E tu, pequeno, não queres ajudar?

Levantou a cabeça mas não olhou de imediato para ela. Sacudiu a cabeça, piscou os olhos duas vezes, como quem deixa um processo complexo em suspenso, e procurou a fonte da voz. Ela voltou.

Vejo que tens umas moedas. Não queres ajudar os meninos mais pobres que tu?

Disse-o com a inocente vaidade de quem é mentora de uma lição de vida gratuita, de quem exerce uma boa acção que, num espírito tão jovem, parece sempre dar mais frutos ou, pelo menos, mais contentamento. Por isso a resposta da criança a exasperou tanto.

Estas moedas são para um gelado. Eu até as dava mas vem aí a Fada dos Dentes e ela também pode dar algumas a esses meninos.


Interrompeu o parêntesis e seguiu, como se nunca tivesse sido interrompido. Ela ainda murmurou um Egoísta! mas não conseguiu ignorar por mais tempo as gargalhadas dos colegas.

Uma mulher de cabelos brancos repuxados no alto da cabeça, coberta de tule azul e envolta numa bolha de brilho amarelo, entregava uma saquinha tilintante, igualmente azul.

Para os meninos mais pobres que o meu afilhado.

Ela nunca mais duvidou que há algo de mágico, de amplificador, de inigualavelmente real na imaginação de uma criança.

sexta-feira, julho 16, 2010

Pinturas

O cheiro a tinta era intenso mas já há anos que deixara de o incomodar. Todas as profissões têm um perfume e à sua pertencia aquele, por inerência, e ele aceitava-o como o do seu próprio corpo, que, na realidade, só é cheiro para os outros, porque o proprietário o não sente.

Pintava a casa desses mesmos outros com o orgulho de quem lhes muda a vida, de quem lhes dá um novo rumo, de quem lhes alarga horizontes e oportunidades. Um bebé está para chegar, ele pinta azul-bebé, rosa-bebé, amarelo-pintainho. A humidade invadiu a casa de banho, ele pinta branco-frescura. A sala vai mudar de ambiente, ele pinta castanho-conforto, verde-natureza.

Prepara os materiais, assobiando estes pensamentos, enquanto o casal deixa a casa.

Eu disse-te que tirasses o diário do quarto porque vinha o pintor.


Oh, o pobre coitado às tantas nem sabe ler. 

Quando regressam, mais tarde, o quarto anoiteceu em vez de amanhecer.

Mas o que é isto?! Eu escolhi amarelo-sol!

Se o pintor ainda ali estivesse, diria que ele próprio preferiu negro-ignorância.

segunda-feira, julho 12, 2010

Gota

Era assim, agora, no número 22 da Rua D. Nuno Álvares Pereira. Nas cordas, a roupa pairava sempre, fantasmagórico entretenimento de uma alma alheada.

Lençol, toalha, pano, meia, meia, novamente lençol.

A ordem variava: por cor, por tamanho, por modelo, por capricho, mas não faltava nunca roupa estendida. A máquina não tinha descanso, o tanque fazia-se assistente, lavava-se o sujo, o limpo, o assim-assim. Quando escasseava o vestuário por lavar, por abundância de estender, a mulher recorria a cortinas, tapetes, colchas, edredões, têxteis sabidamente pouco amantes de alvoroços lavadores.

Assim estava a mulher, agora, estendedora de roupa, alheada do irmão que passava por baixo, no carro negro, comprido, fúnebre, seguido de uma multidão de corvos tristes, lúgubres, encolhidos.

Os femininos olhos desgrenhados, se assim se pode falar de olhos, estiveram sempre na roupa, na corda, fixos como molas.

De um alvo soutien suspenso, uma gota caiu sobre o carro negro. Aquela peça de roupa libertara a mulher da oceânica lágrima que lhe afogava o peito.

segunda-feira, junho 21, 2010

Outra vez

As roupas eram as de trabalho. Deixara as calças de ganga, as sapatilhas e a larga t-shirt bege no lúgubre quarto da pensão. Ainda se estranhava dentro dos sapatos de tacão gasto, da micro-saia, do decote vulgar que eram o marketing do produto que ela era. A lingerie era vermelho-luto, vermelho-luxúria, vermelho-colo, variável do daltonismo dos olhos que a viam.

Ainda o Sol não a vira por cinco minutos (ou uma hora, ou um dia, não sabe dizer) e já subia as velhas escadas de madeira da pensão. Acompanhada.

O rapaz da recepção baixa a cabeça, baixa o tom, baixa os olhos tristes, baixa a pena que tem dela. Como sempre, finge não a ver. Ela agradece, em silêncio, envergonhada dessa vergonha que só aparece ali, na recepção da pensão, no rapaz dos olhos tristes.

Lá em cima, no quarto, veste-se de nudez e é o papel do amor que representa com perfeição. Os gemidos têm tempos coordenados, o alinhamento contorcionista tem jeitos de didascália, as posições sucedem-se como no ensaio geral. No final, extenuada, sente-se mais actriz que prostituta. Faltam-lhe os justos aplausos mas, quando a nota desce sobre a mesa-de-cabeceira, encolhe os ombros e esquece as luzes do palco. Esquece o elenco, esquece o guião, esquece o desempenho. (Só) Assim sobrevive.

Desce os degraus rangentes do esquecimento e, na recepção, pela primeira vez em muito tempo, pára e olha o rapaz. Como pressentindo os olhos dela, ele ergue a cabeça, ergue o tom, ergue os olhos tristes. Ela segura-lhe a mão com o coração descontrolado. O sangue acorre, desenfreado, para aquele ponto quente em que a pele dele e dela se tocam. Não há explicação. Nem dele, o rapaz da recepção, dos olhos tristes. Nem dela, a prostituta, a actriz. Mas acontece.

É ela quem o guia até ao quarto mas, depois disso, não há comandos, não há líderes, não há papéis. Os olhos dele perdem a tristeza e ele olha-a como pela primeira vez, despida de roupas e defesas. As mãos dele perdem a timidez e toca-lhe o corpo abandonado pela primeira vez. Ama-a, também pela primeira vez. Ela, assim amada, é outra. Não a prostituta, não a actriz, não a rapariga das calças de ganga, das sapatilhas, da t-shirt bege. Ela é, tanto quanto se pode ser, pela primeira vez.

Não sabe ao certo quando deixou de ser mas presume que foi quando ele lhe pousou a nota na mesa-de-cabeceira.

Ele, o rapaz dos olhos tristes outra vez.

quarta-feira, junho 09, 2010

Tique-taques

Acariciava o ventre com jeitos de mãe-natureza e, pensativa, séria, sentia com a imaginação toda a formação de um ser humano
ali mesmo

dentro de si.

Nos ouvidos, na cabeça, no corpo todo era aquele

tique-taque, tique-taque, tique-taque.

O tempo levava-lhe a melhor naquela corrida sem meta à vista mas não duvidava nunca que ia acontecer. Era como se a criança estivesse desde sempre

ali mesmo

dentro de si

só à espera de ser.

Quando o milésimo pauzinho se enrubesceu pela primeira vez de cor-de-rosa, contou-lhe com toda a naturalidade do mundo.  

Está aqui mesmo, dentro de mim.

No dia seguinte, no lugar dele estavam o guarda-roupa vazio, o perfume e o bilhete 

Não pode ser. É demais para mim agora.

Ela ouvia o tique-taque do relógio biológico. Ele ouvia um tique-taque de explosão.

Para ele não podia ser. Para ela sempre fora.

quinta-feira, junho 03, 2010

Inútil

O tempo levou-lhe cabelo, flexibilidade, energia. O tempo levou-lhe a juventude e trouxe-lhe a velhice. Trouxe-lhe dores e rugas e sinais. 

Aos 80, falava muito pouco ou nada. Eram mais as vezes em que a boca se abria para entrar comida do que para sair palavra. Naquela viagem de comboio de três horas, com a irmã (quase tão velha) e a neta (ainda tão jovem), falou unicamente para perguntar em que estação deveriam sair. 

Assim era desde que se tornara viúva. Toda a família atribuía o silêncio ao trauma da perda. Mas não era assim.

És um inútil.

Assim dissera ao marido. 

És um inútil. 

Na sua cabeça as palavras repetiam-se até à erosão, até deixarem de ser palavras. 

És um inútil. 

Foram as palavras inúteis de uma inútil discussão. Foram as últimas palavras que o marido lhe ouviu. 

Não extraiu dali desgosto, só uma lição. Agora media as palavras. Com regra e esquadro mental, escrutinava-as com métodos alquimistas. Só as verdadeiras passavam a barreira do silêncio. Só as que faziam sentido.

O tempo levou-lhe juventude, mas ainda não lhe levou a memória.

sexta-feira, maio 21, 2010

Mentira(s)

A primeira mentira saiu assim. 

Repentina. 

Extravagante. 

Catapultada por uma outra língua (que não a sua) na sua boca, como se ao longe se tivesse ouvido um qualquer tiro de partida-largada-fugida. 

Primeiro franziu o sobrolho, como quem estranha algo entranhado. Depois, como não notasse qualquer estranheza no interlocutor, depois de verificada a patente de línguas e entranhas suas, prosseguiu a conversa, tranquilo.

Verdade, verdade, verdade, verdade, verdade, verdade,

mentira de novo. 


Levou a mão mental à boca, arregalou os olhos interiores, surpreso. O interlocutor dava seguimento ao discurso, naturalmente, sem lhe detectar as sombras no rosto. No corpo, na mente, na alma. 


Assim discreto, quase dengoso, quase sensual, veio aquele amo-te. Não sabe como. Nem porquê. Só sabe que veio do mesmo lugar de todas as outras mentiras.

sexta-feira, maio 07, 2010

A invenção

Foi já numa última tentativa desalentada que a máquina funcionou. O pequeno papel cuspido pela monstruosa geringonça era o resultado de dias e noites e cálculos e esquemas e gráficos amontoados na mesa cuja superfície esquecera já a luz do sol. 

O gordo presidente da Câmara, em véspera de eleições, saudou efusivamente a invenção e o seu criador e, sem deixar de enxugar o suor da testa com o teimoso lencinho branco, mandou anunciar que "a autarquia iria colocar a máquina na praça principal, no feriado municipal, para usufruto de todos os habitantes".

Quando o feriado amanheceu, o pequeno grupo de miúdos que tentava espreitar a invenção por baixo do pano negro já se tinha transformado numa multidão de várias idades, cheiros e dores que esperavam o presidente. O homem chegou, pomposo e ridículo, com uma faixa vermelha que lhe emproava ainda mais o ventre barrigudo e começou:

Enquanto presidente desta belíssima autarquia, já habituada a gloriosos acontecimentos, venho inaugurar a... a...

Olhou em volta, constrangido, furioso. Ninguém lhe tinha comunicado o nome do aparelho. Perante a expressão inquisitiva de toda a sua comitiva, esqueceu as formalidades e, num tremendo e inútil esforço de imaginação, baptizou-o assim mesmo.

...a máquina-de-calcular-a-idade-interior!

O inventor, quase engolido pela população ansiosa, torceu a boca num amargor evidente e fechou os olhos com força, numa rejeição quase inata daquele nome politicamente imposto. Ignorante ou indiferente, o presidente prosseguiu mas, notando o burburinho que se elevava no ar, deu por terminado o discurso e, destapando a máquina, foi ele o primeiro a entrar no que poderia ser uma cabine de provas de uma loja lunar. 

Uns quantos pi-pis e luzinhas depois, a máquina expeliu um papelinho com um número de dois dígitos que ficou pendurado, para observação de todos, até que o presidente o arrancou e, vendo-o, amassou de imediato, vermelho, embaraçado pelos seus 10 anos interiores.

Sucederam-se centenas de experiências. Umas provocavam gargalhadas colectivas, outras breves embaraços pessoais. Até que ela entrou na máquina.

Os pi-pis e luzinhas não terminavam e o papel não saía. A mulher, impaciente e envergonhada pelas centenas de olhares que a interrogavam, espreitava a ranhura de onde sairia o papel, mas nada. Só pi-pis e luzinhas intermináveis. 

Já o inventor tentava abrir o painel quando o presidente encaixou um formidável pontapé na máquina encravada que, para fúria e surpresa do primeiro, fez o mecanismo funcionar tempo suficiente para imprimir o papel.

Os amores e desamores, os gostos e desgostos vários, sucessivos e incessantes da jovem mulher de 100 anos interiores arruinaram a máquina do inventor para sempre.

terça-feira, abril 27, 2010

Não-conto

Nesta história não há pessoas.

Há uma cozinha. Uma porta aberta. Um jardim.

Há flores vermelhas e pássaros azuis e cogumelos.

Nesta história não há adultos nem crianças. 

Há frutos na fruteira e ímans no frigorífico.

Há sol-de-meio-dia e cheiro-de-terra-molhada.

Nesta história não há homens nem mulheres nem amores-assim-assim. 

Há canela e bolos no forno.

Há música de saxofone.

Nesta história não há pessoas porque estou cansada de pessoas.

Nesta história não há pessoas porque nem sequer é uma história.

terça-feira, abril 20, 2010

Mancha

Quando a mancha lhe apareceu no peito não se alarmou. Ao contrário da mãe. Da irmã. Da melhor amiga. 

Vais ter que ir ao médico.  

Ela assentia uma e outra vez, hum, hum, como quem ignora, como quem espera que esqueçam o formato oval, o tom vermelho-sangue, os laivos ondulantes que lembram uma

impressão digital

marcada a quente na áreola morena, no caminho circundante que o mamilo desenhou. 

Vais ter que ir ao médico. 

De novo. 

Hum, hum.  

De novo.

Não vai. Ela sabe o quem, o onde, o como e o porquê daquela mancha. Ela sabe sobretudo que não é uma mancha.

Não vai ao médico porque quer lembrar sempre a lição daquela mancha. Não quer o seu corpo como se nunca ninguém tivesse lá morado.

quarta-feira, abril 14, 2010

Escuro

A caminho da igreja lembrava a visita do dia anterior à cunhada. Nem o sol do meio-dia, cruelmente aferrado ao eterno luto das roupas, interrompia a ladainha mental da mulher que, uma e outra vez, revia a desgraça da cunhada entrevada. Revia o seu alheamento apático, o seu silêncio de tumba, os seus (raros) dizeres desconexos e incoerentes, as suas memórias toldadas e remexidas, as suas chagas de corpo acamado, a sua apressada doença de nome estrangeiro.


Ao som dos seus passos arrastados de 83 anos, a mulher tentava aclarar as lembranças de há um mês atrás, aquelas em que a cunhada, dando-lhe o braço à saída da missa, a arrastava num andar tremendamente forte e veloz, num passo que uma não acompanhava e de que a outra não abdicava. Lembrava-lhe o rosto espontâneo sob a ternura dos cabelos alvos, comovedoramente semelhantes aos do irmão de uma, dolorosamente parecidos com os do marido de outra.

Pousando a mão sobre a porta da igreja, temeu o dia em que ficasse, também ela, reduzida a sombra de si própria e, assombrada pela pungente imagem, agradeceu aos céus a lucidez .

Já dentro do edifício, saboreou por uns momentos a frescura que as paredes de pedra guardavam e, ajoelhando-se, começou a rezar. Ainda não chegara ao fim da oração e uma tempestade ergueu-se-lhe no fundo das entranhas.

Também o seu mundo escurecia.

quarta-feira, abril 07, 2010

Sempre noite

Pousou o menino do lado de fora da porta e ajoelhou-se para lhe apertar o casaco. Assim, quase ao seu nível, sentia-se ainda mais pequena, ainda mais impotente. O pequeno rosto sorridente, a contraluz, parecia ainda mais despreocupado, ainda mais desprotegido.

Pensou em recolhê-lo, voltar para dentro, para o pijama, o peluche, a manta azul. Aquela noite tranquila parecia querer engolir-lhe o filho.

O som de passos a subir as escadas interrompeu-lhe o pensamento.

Vamos?

A criança voltou-se e balbuciou uma expressão de contentamento. A mãe estremeceu, encolheu-se ainda mais no sorriso falseado.

De mão dada, o menino tropeçou na primeira escada, caiu, chorou. Se falasse, podia jurar que foi o pessimismo que o empurrou.

quinta-feira, abril 01, 2010

Pólvora

Já não sabe como chegou ali nem porquê. De braço estendido,

de alma encolhida,

de arma na mão.

A mão, envolta no revólver como se sempre tivesse sido assim, sangue e pólvora cobertos de pele e aço, assim perdida a fronteira entre humano e desumano.

O outro chora, treme, implora, ajoelha-se num alinhamento perfeito com o cano do objecto que ameaça, prepotente.

Para ele é tudo silêncio. O tempo escorre leitoso, preguiça lentamente sobre aquele momento, como sonho. Como pesadelo.

As lágrimas acordam-no. Não as do outro. As suas.

Largou o revólver no chão quando um tiro de realidade o atingiu em cheio na alma.

quinta-feira, março 25, 2010

Dentes

Aguardava estoicamente sentada na sala de espera do consultório do dentista.

O Sr. Doutor vai já atender.

Tentou responder, amável, mas as palavras embrulharam-se numa onda gigante e descontrolada que a atingiu em cheio nas gengivas inchadas, inflamadas, provocando um uivo rouco de dor. Esticou então os lábios num ensaio de sorriso mas só conseguiu compor um aspecto ainda mais ridículo à face já desfigurada, já lamentável.

Uma mão em cima da outra sobre o colo, o queixo esquecido no peito, como quem medita, como quem reza, como quem se prepara para o combate final.

O Sr. Doutor manda entrar.

Ao abrir a porta chegou-lhe aquele cheiro estranho (uma mistura de flúor e pó de dentes), que a enjoou menos do que a animou. Sentou-se na cadeira velha, cansada, com a pele já gasta de anos e anos de dores bucais com habilidades contorcionistas. A sua voz determinada sobrepôs-se ao estrépito do gingar da cadeira.

Quero que me arranque todos os dentes.

Assim. Sem mais. O dentista, mais velho e mais cansado que a cadeira velha e cansada do seu consultório, não fez perguntas. Segurou o alicate com a determinação do hábito e, um a um, arrancou todos os dentes da mulher.

Primeiro foram os incisivos. Os que começaram a doer da primeira vez que lhe partiram o coração, há tanto tempo que havia deixado de o contar.

Depois os caninos, que lhe acompanharam a dor de alma de ver a mãe numa cama, débil, senil, sem a reconhecer a ela nem a si própria.

Por fim, o dentista, extenuado, extraiu-lhe os molares. Uma dor quase insignificante que a seguiu como sombra quando perdeu o filho.

Quando saiu, sem dentes, tinha o sorriso mais feliz do mundo.

sexta-feira, março 19, 2010

Berlindes

Os passos da tia a entrar no quarto interromperam o diálogo entre o seu camionista-de-caixa-de-fósforos e o polícia-colher-de-pau. Sentado no chão, de pernas cruzadas, qual pequeno buda, analisou-lhe a expressão. Escura. Pesada. Feia. Como se tivessem desaparecido todos os berlindes do mundo.

Nunca mais vais ver a tua mãe.

Deu-lhe vontade de rir aquela tia louca que via demasiada televisão. A mãe não desaparece como os desenhos animados. Ele toca-lhe, ela abraça-o. Está sempre ali, a um ou dois passos. No máximo uns dez, quando ele vai brincar com o Miguel para o parque.

Ao ver o sorriso trocista que o miúdo esboça, a mulher exaspera-se, agarra-o pelos braços.

Nunca mais vais ver a tua mãe, percebes Pedrinho? Nunca mais.

E cai-lhe no colo pequeno, num choro compulsivo, sufocada por soluços guturais. Ele faz-lhe festas nos cabelos desalinhados, pacientemente. Pensa que às vezes também ele choraminga porque perdeu o Rufus. Mas depois a mãe encontra-o, ainda cão, ainda de peluche. E ele deixa de chorar. Assim que a mãe entrar no quarto a tia vai perceber que está a portar-se como um bebé.

Alguém entra. Mas não é a mãe. É o tio.

Está toda a gente na sala.

A tia levanta-se. Sacode as lágrimas como se sacode a chuva. O menino olha a camisola encharcada com algum aborrecimento mas encolhe os ombros. Os tios encaminham-se para a sala. Ele volta para trás, à procura do Rufus. A mãe não vai querer procurá-lo depois da chatice que vai ser explicar à tia que nunca desapareceu.

Na sala estão todos como a tia. De preto. Com aquela expressão. Escura. Pesada. Feia. O miúdo diz:

Vem aí a minha mãe.

E as mulheres rebentam num choro como o da tia. Os homens escondem os olhos com as mãos.

Vem mesmo. Ainda agora a vi a subir as escadas.

O tom já é mais alto. Mais zangado. A mãe não ia gostar mas ele também não gosta que não acreditem nele. Ninguém desvia o olhar, ninguém muda de posição. Não fosse o soluçar e pareciam estátuas.

Quando a mãe entrou na sala e mais ninguém a viu, decidiu que tinha que mudar de família.

quarta-feira, março 10, 2010

Sem Coração

Na vila toda a gente a respeitava mas a fama acompanhava-a mais que a própria sombra. "A Sem Coração". Assim a chamavam, com a simplicidade de quem dispensa explicações ou teorias.
Nunca se tinha apaixonado. Nunca o havia dito mas tão-pouco o escondia.

Era viúva no papel mas aquele homem primitivo que a levou ao altar e lhe amaldiçoava a infertilidade nunca lhe tinha provocado o mínimo sobressalto. Sempre lhe serviu a sopa com a naturalidade com que atirou o primeiro punhado de terra sobre o seu caixão.

Num final de manhã, sentada no alpendre a balançar sobre a própria solidão, sorriu ao carteiro que chegava e sorria. Como sempre chegou e sorriu. E, com aquele sorriso, chegou uma enorme onda quente, feliz, que se formava na boca do estômago e rebentava nas mãos, nos pés, no cabelo.

Antes que tivesse tempo de falar (só de sentir), caiu por terra. E aí ficou. Deixou de ser.

O destino resgatou-a ao desgosto de descobrir que o amor também morre.

terça-feira, fevereiro 23, 2010

IV - De cor

Verdes...

Um passo.

Verdes...

Outro passo.

Verdes. Verdes. Verdes.

Uma corrida apressada para atrasar o tique-taque do relógio autoritário que interrompe a ladainha mental.

Só quer que sejam verdes. Os olhos. Dela. Claros, escuros, translúcidos ou profundos, não importa. Mas verdes, sim. Porque os imaginou assim. Porque já os viu de todas as vezes em que sonhou com ela. Que seja ela.

Verdes...

Na praça inundada de sol procura por entre as mesas, como combinaram. Como lhe disseram que ia ser. Ela sorri muito e ele sabe que é ela. Porque sorri com os olhos

verdes.

A conversa flui como boa música, que nunca acaba porque ninguém tem coragem de lhe impor um fim. Descontraída, natural, como se sempre tivesse sido assim: ele e ela e a conversa que é como boa música.

Ele abandonava-se mais e mais à cadeira quando da boca dela (não dos olhos) sai aquela frase mais escura. O mesmo sorriso, o dos olhos, verdes, mas aquela frase escura, como sombra.

Endireitou-se no assento como quem franze o sobrolho. Atento. E, a pouco e pouco, o discurso manchado de sombras, pontos negros. Abismos entre os dois.

Foi quando olhou novamente no fundo dos olhos dela que percebeu. Eram castanhos. Como sempre haviam sido. Foram verdes por vontade dos seus ao longo dos anos que durou aquela conversa.

No café pediu um chupa-chupa amarelo que suavizasse o amargo incolor que sentia na boca.

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

III - Música

Ele entrou e sentiu o silêncio que ela pôs em tudo. Um silêncio doce, alaranjado.

A noite, assim, tão ternamente chamada, encheu o quarto que só o sorriso dela iluminava. Ele, ainda encantado, acreditava que não existiam mais sorrisos. Enlaçou-a. A ela. Ao sorriso dela. À luz que ela era. E dormiu.

Assim, abraçados, abandonados ao sono, amaram-se em notas e ritmos sincopados, tempos e contratempos de um compasso cheio.

Corpo

Mente

Alma

em afinações imperfeitas, improvisos num solo a dois.

Assim, sem ambição, sem pretensão, só com enlevo, se fez a mais sublime das músicas. A que nunca se ouviu.

E dessa vez, como de outras, mas ainda assim luminosamente diferente, foi ele quem deixou um brinco-pedaço-de-alma.

Nunca mais a viu. Dissolveu-se. Como um sonho. Como se nunca tivesse sido real.

Até àquele dia, tão frio, tão distante, em que ela lhe trouxe o autógrafo.

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

II - Ainda Inverno

Saiu de casa de manhã. Como todos os dias. Depois do banho demorado. Como todos os dias. Depois de se vestir com precisão de ritual. Como todos os dias. Depois de engolir o café apressado. Como todos os dias. E naquele dia, ela.

Ali.

Sentada na escada fria, os cabelos num desalinho de vendaval, o casaco comprido encostado ao corpo com a pressão de um abraço, o olhar cansado perdido algures entre sonho e realidade.

Ela.

Ergueu os olhos para ele e brilhou. Sorridente. Feliz. Expectante. Toda Luz. Levantou-se com a graciosidade de quem vai levantar voo, encheu a boca suave e "Olá". Um "Olá" morno, aconchegante, um "Olá" que soava a "Para Sempre".
Do bolso tirou um pequeno papel cuidadosamente dobrado em mil. Como um nascer-do-Sol, ficava mais e mais luminosa a cada centímetro que a sua mão se aproximava da dele.
Ele, ainda frio de surpresa, ainda manhã de silêncio, colheu o papel, desdobrou-se nele mil vezes e viu nas letras já esbatidas o nome que trazia gravado na memória, a grafia de uma mão inalcançável que admirava tanto, tanto, tanto. Uma mão do outro lado de um mundo que ele havia feito seu.

"Foi ele mesmo que assinou." A voz ainda morna, ainda doce.

"Obrigado. Muito obrigado". E foi só. Pousou-lhe um beijo rápido na bochecha e seguiu. Ele, ainda Inverno por dentro, não estava pronto para a Primavera que ela era.

Ali.

Quando a neve começou a cair, um reflexo mostrou as duas lágrimas que ela trazia penduradas nas orelhas.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

I - Último sentido

Virou-se na cama e estendeu o braço moreno para chegar à caixa. A tampa de madeira escura, lisa, envelhecida pelo sol e pela lua, cansada de ser tampa, de abrir e fechar, sem outra utilidade que não a de revelar e esconder, fez ranger os gonzos e revelou a amálgama do conteúdo.

Brincos.

Brincos.

Brincos.

De cores, formas, tamanhos vários. De mulher, todos.

A princípio era acaso. Elas partiam e esqueciam-nos nos lençóis ainda quentes, no coração ainda suspirante, na vida ainda em desordem. Ele guardava-os, mais por distracção do que por dedicação. Assim abandonados, acumulados, foram conquistando paixão de coleccionador. Esquecera já os nomes, às vezes até os rostos de quem outrora os usara. Catalogava-os por aromas, sabores, sons de suspiro e gargalhada, palavras, silêncios, ondas assoberbadas de calor e frio. Amor(es).

Não os guardava por capricho nem por vaidade. Guardava-os para o caso de algum dia querer recolher todos os pequenos pedaços de alma que foi esquecendo na história de cada brinco.