segunda-feira, outubro 17, 2011

Boa noite

Respirou profundamente e marcou o número antes que a hesitação a paralisasse. A compaixão e a empatia existiam nela como um perfume, agradável aos outros mas que já não sentia. Mais do que acreditar, sabia da esdrúxula força que é o Bem e esse fardo toldava-lhe agora o julgamento sobre aquele impetuoso telefonema.

O toque ritmado não se demorou e uma voz determinada rapidamente se assomou à linha. Não deixou que o interlocutor terminasse. A queda de palavras interrompeu-o abruptamente, fresca, límpida, serpenteando em volta do seu sorriso.

Vivi hoje um dia esplendoroso. Ri, cantei, dancei e fui feliz como se neste dia se tivessem comprimido todas as gotas de tempo de todos os dias que me restam. Morresse eu amanhã e teria vivido o suficiente. A todos os seres humanos já foi dado viver, pelo menos, um momento de felicidade. Queria pedir-lhe que não se esquecesse disso e que vivesse uma boa noite. 

Desligou. Do outro lado, sobre as inúmeras secretárias, toque após toque, a noite prosseguiu, indolente. Só um imponente sorriso vibrava pela linha, chamada após chamada

112, boa noite. 

segunda-feira, setembro 19, 2011

Interior

Envergonhavam-na as roupas repetidas, o cabelo infantilmente penteado, as refeições velozes e amadoras. 

Agora que sabia contar, sabia que, com sete anos, devia multiplicar-se como mãe da irmã de cinco e subtrair os dois pais incertos a quem se somavam incontáveis embriaguezes.

De manhã, à abelhuda e repetida questão da auxiliar sobre o pequeno-almoço, respondia com a mais insondável imaginação e apetite. Adivinhava as abundantes refeições matinais dos colegas e, no falar e no pensar, degustava-as com a irmã. A mais pequena, de espírito ainda alheio às traquinices do ego, negava com vibrante indignação. 

Croissant com queijo e leite com chocolate? Mas nós nem jantámos, mentirosa!

Ela fincava convicção e fartura e era só a mais pequena quem inaugurava o estômago.

Nos dias de natação, fingia medo da piscina com a irmã por vergonha do banho. Não era a nudez que a incomodava mas o momento que o sucedia. A mesma cor, o mesmo odor. 

A mesma roupa interior.

Um dia, soube da mais nova já no duche do temido balneário. Fintara a irmã e, já nua, já contente, já chapinhante, gritava que as educadoras lhe iam dar umas cuecas lavadas. Envergonhou-se. 

No dia seguinte, entrou na escola triunfante. A saia amarela destoava do vermelho da camisola de lã mas, em propositadas ondulações, deixava à vista umas orgulhosas cuecas lavadas. Numa corajosa incursão nocturna, driblara o bafiento hálito dos pais e encontrara a caixa de cartão onde a negligência fazia as suas roupas reféns.

O merecido prémio que envergava permaneceu durante dias, teimoso, até ter a mesma cor, o mesmo odor. 

Até ser a mesma roupa interior.

segunda-feira, setembro 05, 2011

Rainha

Deitada na cama, empurrou o cobertor e deixou a descoberto o corpo vazio. Olhou, demoradamente e sem pena, mãos, pés, pernas, mamas, braços descarnados que não eram seus. Abandonada a guerra que travava há dois, dez, cem anos, era só paz o que vestia.

Ligou à amiga de sempre. Sempre suave, sempre quente, despediu-se com um até sempre, Aurora.

Ligou aos filhos. Chamou-os. Riu com as suas lágrimas e pediu, menos por vaidade do que por piedade da dor deles, que a fizessem bonita. Sorriu sempre, com o sol que trazia no peito. Quis beijos de boa noite. E a noite chegou. 


Deitada no longo carro negro, partiu para a terra onde começou. Ia a meio o caminho quando a viatura falhou. Negro o carro, negro o fumo, negro o espírito dos que o seguiam. O filho, entendido nas artes da mecânica como nas artes do amor, quis conduzi-lo apesar da relutância do negro condutor. Sem mais quebras, a máquina deslizou até ao destino.

Foi muito sussurrada a engenhosa habilidade do rapaz mas, adormecida, ela sabia que, de estranheza, o episódio teve só o que de estranho tem o amor.

quarta-feira, agosto 10, 2011

Depois de uma noite que existiu por

dias
meses
anos,

abriu as cortinas e a luz entrou

na sala
na mente
na alma

Amontoou na mochila

roupas
forças
vontade

e saiu. Não sabia onde ela estava. Mas acreditava. Encontraria

O dia
O lugar
O sentido

onde paira o fim da órbita escrita pela história dos dois para, de regresso ao começo, serem

ele
ela.

Só.

terça-feira, agosto 02, 2011

Uniões

A mesa era longa de gente e de afectos. Comiam-se histórias de feitos passados, bebiam-se piadas e discussões e nos ventres de cada um soavam gargalhadas digestivas. Assim são as reuniões que se fazem esperar. Da ansiedade ou falta dela nasce o desejo maior de querer e ser querido, de ouvir e ser ouvido.

Unidos por laços ditados pela genética, pela circunstância ou pela afinidade, os convivas brindavam, como brindam as pessoas alegres. 

Ela entrou, suave. Não falou. Não sorriu. Não fosse a extraordinária força da sua simples presença e todos se teriam alheado daquela entrada, como de outros vaivéns decorridos na sala.

Apagaram-se as conversas, os sorrisos e o marulhar de copos e talheres. Fosse dia e ter-se-ia apagado o Sol também. Ninguém precisou de olhar para saber que, ao lado dela, na longa mesa de gente e afectos, tomou assento o peso negro e silencioso da ausência que nunca ali deixou de se fazer sentir.

segunda-feira, maio 09, 2011

Marés

Houvesse mais mar dentro dele e mais profundamente ela mergulharia. De tão abandonado mergulho, afundou-se na sua alma azul e, ondulada, fez-se mar.

terça-feira, abril 26, 2011

Noite

A lua ia alta e o homem jorrava impropérios desvairados e cambaleantes. Desvairada e cambaleante ia também a embriaguez terminal que levava na alma.

No percurso incerto que um pé traçava sem acordo do outro, viajava um inusitado propósito de atingir nas entranhas todos aqueles cujo imediato diagnóstico não fosse uma definida infelicidade. A cadela, sempre dois passos atrás, permanecia mulher cautelosa e envergonhada, entre o cuidar e o fugir.

O abalo do qual o homem era epicentro alargava-se na proporção dos decibéis e a força destrutiva era tão determinada que, em breve, não restava ninguém no passeio. Sentiu o arrepio quente da frustração e, fazendo-se onda sem praia, elevou uma tábua extraviada e assentou-a nas costas da cadela.

O lamento dela mal se ouviu. Foi o ganido dele que ecoou toda a noite pelas ruas da cidade civilizada.

domingo, março 27, 2011

Tributo

Na minha família somos todas mulheres de amor. Não de amores perfeitos e irreais. De amores que cuidam, de amores que querem, que lutam e protegem. 

A minha família é uma família de mulheres em essência. A alma da minha família é tão feminina quanto uma alma pode ser. Nascemos com o mandamento genético de cuidar e prover, mesmo as que trocaram as raízes das duas margens do rio Minho para dispersar as suas sementes pelos ventos das cidades.

As mulheres da minha família não se negam. São mulheres da minha família onde quer que estejam, quem quer que sejam. Somos mães, esposas, filhas, irmãs. Vivemos por amar da mesma forma que o mar vive por ser mar. As mulheres da minha família são forças da Natureza mesmo quando choram. As mulheres da minha família são forças da Natureza ainda que não o saibam e ninguém lhos diga. 

As mulheres da minha família lutam e sobrevivem para amar e viver. Assim somos. É esse o nosso sentido.

domingo, fevereiro 27, 2011

Filha de pai incógnito. 

Doía-lhe aquela bruta impressão de um trauma pessoal na sua identidade. Não existiam designações de "traída pelo marido" nem mesmo um "companheiros múltiplos" e parecia-lhe de mau gosto que a sua orfandade fosse assim exposta como condição inerente.

Ao longo da infância sentiu-lhe a falta nos dias do Pai. Na adolescência, quando discutia autorizações e horários para incursões nocturnas. Desconhecia as didascálias de um papel paterno e sempre lhe pareceu que a personagem materna mantinha uma presença mítica no palco da sua vida. Agora, já adulta, não era a existência que cobiçava mas o nome. Só um nome que cobrisse de normalidade aquele rótulo de pessoa digna de dó. Com a morte da mãe, havia perecido também a hipótese de dar um nome ao macho cobridor a que o Registo Civil chamava pai.

A primeira vez que a pomba lhe bicou o vidro da cozinha, ignorou-a. Saiu, apressada, para trabalhar e não voltou a lembrar o assunto até, já noite, chegar a casa e sentir o barulho alarmante de uns minúsculos golpes pneumáticos. A pomba permanecia no mesmo sítio, no mesmo intento.

Afugentou-a, bateu os pés no chão, vozeou. O animal, firme no objectivo mas determinado na sobrevivência, voou. Na manhã seguinte, o mesmo local, a mesma pomba, as mesmas bicadas. Mas um papel.

Amarelado, pequeno, enrolado na perna da pomba. Decerto sempre ali tinha estado ainda que ela o não tivesse notado. Abriu a janela. O animal caminhou pela mesa, sobranceiro às asas e estacou, solene. Ela retirou o minúsculo papel e, desenrolando,

Uma morada. Um contacto. 
António, 
Teu pai

Afagou a pomba e empurrou-a pela janela. Voltou a enrolar o papel, que rapidamente destinou ao caixote do lixo. Sorriu e saiu. Feliz.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Empatia

Se à antipatia fosse dada a escolha da sua aparência, seriam aqueles os olhos, o cabelo, a expressão que escolheria. A impressão que ficava a quem a conhecia, não era a de que ela era antipática mas a de que era a própria antipatia.

Perante gracejos e afeições, a postura da criatura elevava uma massiva superfície anti-aderente, repulsiva. E esse incómodo atributo destacava-se ainda mais naquela família, dada a partilhas, a abraços e gargalhadas. Foi à festa menos por vontade de participar das comemorações do que para evitar que o namorado fosse sem ela. Não entendia que ele pertencesse àquele clã que agora via, onde a existência se desenrolava, intrometida, num enorme espaço público onde a privacidade não cabia.

À vulgaridade das questões que lhe dirigiram respondeu com um silêncio nauseado, desencorajador. No entanto, em vez de dissuadir as atenções, limitou-se a afastá-las. Num pequeno círculo, perto de si, comentava-se com amargura e um certo tom de indignação a escolha (pouco) amorosa do benjamim. Como num concílio tácito, decidiram votá-la à transparência.

O vaticínio teria sido outro se soubessem dos dois primeiros anos de existência incómoda para quem não a desejou e dos dez anos, casas, pais que lhes sucederam ou dos últimos quatro passados numa instituição onde nada nem ninguém era seu.

Ele era seu. Ele era a sua empatia.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Alturas

Tomás era grande demais para o amor. No mais literal dos sentidos.

A dissonante distribuição anatómica dos seus 205 centímetros tornavam-no uma opção pouco interessante para o género feminino, cujo soberbo coração não era de todo alheio às questões mais práticas de uma vida a dois.

Tomás invejava o companheirismo que observava na vida alheia sem, no entanto, sentir pena de si próprio. Encarava a cruzada sentimental como uma ambição e não como uma necessidade. Foi quando conheceu o humor vivo e a determinação dela que a ambição se tornou batalha e o condicional, imperativo.

Experimentou técnicas bárbaras para encolher e não houve substância química ou natural que o seu organismo não tivesse processado na vazia tentativa de deixar de a olhar da incontornável perspectiva altiva.

Não soube qual das mezinhas resultou ou qual das insuportáveis torturas se tornou justificável, mas, um dia, acordou mais pequeno. Não era uma diferença notória mas ele, conhecedor experimentado da geografia do seu corpo, percebeu-a.

Não tardou muito até que todos os que rodeavam Tomás notassem o seu inexplicável encolhimento. Também ela notou e essa consonância de tamanhos gerou uma agradável sensação de bem-estar no um que eles eram quando eram dois.

Tomás amou-a e amou-se até ao dia em que acordou, ao lado dela, e se notou mais pequeno.

A dissonância voltara e Tomás não voltou ao corpo dela, nem quando passou a caber na palma da sua mão.

domingo, janeiro 30, 2011

Visão

Quando Noé nasceu, ninguém percebeu que havia nele algo de diferente. Era um ser aparentemente normal e normal era tanto quanto se desejava. Não houve quem desconfiasse de coisa alguma durante a infância. Nem Noé, nem a família. Só na adolescência, com o frutífero convívio com rapazes e raparigas da mesma idade, percebeu que a sua visão da realidade era líquida e fluída e não viscosa e estagnada como a dos demais. 

Noé tinha a límpida capacidade de percorrer o tempo sem  obedecer a leis de linearidade. Olhava uma criança e via-a, com nitidez e realismo, já velha, cansada, já pai e avô de outras crianças como ela. Olhava um idoso e, involuntariamente, perscrutava-lhe os tempos de infância e podia mesmo jurar ser capaz de lhe acariciar os inocentes caracóis. 

De início, atribuiu o facto a um qualquer tipo de vidência. Já tinha ouvido falar de pessoas assim e a repetição do fenómeno, ainda que minoritária, era reconfortante. Foi com crescente desalento que percebeu que os videntes que visitava o eram só em horário de expediente. 

Noé não previa acontecimentos, situações, catástrofes. Noé via, ainda que não o desejasse, o tempo dos outros num escorrido relógio de areia. Tolerava, por isso, melhor todos os defeitos da natureza humana, porque os entendia em perspectiva. Não havia, para Noé, falha ou qualidade permanente e a paixão tornava-se, assim, o único marco temporal distante. 

Um dia, ouviu-a atrás de si. Foi pela voz cálida que se apaixonou. Não pelos olhos de caramelo nem pelos cabelos amenos. Não se permitiu vê-la. Por uma vez, desejou ver um presente que não fosse futuro ou passado. Foi com determinação que entrou em casa do mais velho dos videntes.

Cegue-me, por favor. 

domingo, janeiro 23, 2011

Revolto

Não sabe como ficou assim. Já nem sabe quando. O mal-estar chegou levemente e deu lugar a uma irritação espontânea, que a pouco e pouco se foi ancorando como navio cansado de viagens. A alegria alheia causava-lhe uma impaciência que abeirava a cólera e as gargalhadas, os sorrisos, os abraços eram, para ele, um repugnante espectáculo de humanidade.

Reconhecia-lhes, aos outros, as expressões. Num qualquer tempo passado, como noutra vida, recordava-lhes o efeito na sua própria face, o calor ruborizado, a tensão ascendente dos lábios arqueados, o impulso ancestral do contacto físico. Perdeu-os.

Não sabe como. Já nem sabe quando.

No autocarro, como todos os dias, ergueu um silêncio imponente em sua volta, vítima de uma quarentena auto-prescrita. Olhou o chão enquanto murmurava pensamentos soltos, tentativa inútil de evitar que a felicidade dos outros lhe penetrasse o sistema nervoso.

No banco da frente, uma criança ria. Puxava os cabelos da mãe e ria desalmadamente.

Ele irritava-se.

Irritava-se a mãe.

A criança puxava e ria, ria, ria.

No banco da frente, a mãe eleva a mão aberta, remo pronto a abater-se sobre as águas agitadas da criança, e ele, firme, agarra-lhe o pulso com uma veemência tal que a mulher temeu nunca mais recuperar a vida do membro cativo.

Não sabe como. Mas sabe quando e porquê.

sexta-feira, janeiro 07, 2011

Amor-perfeito

Chegou a casa. Bateu a porta, lançou as chaves na direcção da tina, sem se importar com o tilintar turbulento do bronze de umas contra o bronze da outra. Encostou a bengala ao sofá. Olhou-a.

Ela, olhos fixos num horizonte imaginário, não o viu. Assim era sempre. Alheada, habitante solitária de uma bolha flutuante.

Não deixou de a olhar, como se essa fosse a derradeira forma de contacto, última esperança de uma ligação suspensa no tempo. Na face dura, ele trazia os sulcos talhados por discussões, sorrisos e esperanças. Há muito que ele deixara de ser ele para passar a ser monumento do amor a ela.

Levantou-a, falou-lhe de tempos futuros e ela ouviu tempos passados. Vestiu-lhe o casaco, penteou-lhe os cabelos cor-de-cinza e, guardando-lhe o braço debaixo do seu, saíram.

Na rua, passeava ao ritmo dela e nunca deixava de falar, sem a olhar, imaginando a resposta, a nova pergunta, a gargalhada.

De súbito, à sua frente atravessou-se um rapaz, que corria num entusiasmo veloz em direcção a uma rapariga de sorriso tímido e coração aberto. Beijaram-se.

Lon

ga

men

te.

O beijo não acabava e ele, sem a olhar, preocupava-se que a cena fosse pouco própria para os olhos dela. Não viu, por isso, que ela, por um segundo, o olhou e lhe disse, sem falar

Desculpa.