quinta-feira, março 25, 2010

Dentes

Aguardava estoicamente sentada na sala de espera do consultório do dentista.

O Sr. Doutor vai já atender.

Tentou responder, amável, mas as palavras embrulharam-se numa onda gigante e descontrolada que a atingiu em cheio nas gengivas inchadas, inflamadas, provocando um uivo rouco de dor. Esticou então os lábios num ensaio de sorriso mas só conseguiu compor um aspecto ainda mais ridículo à face já desfigurada, já lamentável.

Uma mão em cima da outra sobre o colo, o queixo esquecido no peito, como quem medita, como quem reza, como quem se prepara para o combate final.

O Sr. Doutor manda entrar.

Ao abrir a porta chegou-lhe aquele cheiro estranho (uma mistura de flúor e pó de dentes), que a enjoou menos do que a animou. Sentou-se na cadeira velha, cansada, com a pele já gasta de anos e anos de dores bucais com habilidades contorcionistas. A sua voz determinada sobrepôs-se ao estrépito do gingar da cadeira.

Quero que me arranque todos os dentes.

Assim. Sem mais. O dentista, mais velho e mais cansado que a cadeira velha e cansada do seu consultório, não fez perguntas. Segurou o alicate com a determinação do hábito e, um a um, arrancou todos os dentes da mulher.

Primeiro foram os incisivos. Os que começaram a doer da primeira vez que lhe partiram o coração, há tanto tempo que havia deixado de o contar.

Depois os caninos, que lhe acompanharam a dor de alma de ver a mãe numa cama, débil, senil, sem a reconhecer a ela nem a si própria.

Por fim, o dentista, extenuado, extraiu-lhe os molares. Uma dor quase insignificante que a seguiu como sombra quando perdeu o filho.

Quando saiu, sem dentes, tinha o sorriso mais feliz do mundo.

sexta-feira, março 19, 2010

Berlindes

Os passos da tia a entrar no quarto interromperam o diálogo entre o seu camionista-de-caixa-de-fósforos e o polícia-colher-de-pau. Sentado no chão, de pernas cruzadas, qual pequeno buda, analisou-lhe a expressão. Escura. Pesada. Feia. Como se tivessem desaparecido todos os berlindes do mundo.

Nunca mais vais ver a tua mãe.

Deu-lhe vontade de rir aquela tia louca que via demasiada televisão. A mãe não desaparece como os desenhos animados. Ele toca-lhe, ela abraça-o. Está sempre ali, a um ou dois passos. No máximo uns dez, quando ele vai brincar com o Miguel para o parque.

Ao ver o sorriso trocista que o miúdo esboça, a mulher exaspera-se, agarra-o pelos braços.

Nunca mais vais ver a tua mãe, percebes Pedrinho? Nunca mais.

E cai-lhe no colo pequeno, num choro compulsivo, sufocada por soluços guturais. Ele faz-lhe festas nos cabelos desalinhados, pacientemente. Pensa que às vezes também ele choraminga porque perdeu o Rufus. Mas depois a mãe encontra-o, ainda cão, ainda de peluche. E ele deixa de chorar. Assim que a mãe entrar no quarto a tia vai perceber que está a portar-se como um bebé.

Alguém entra. Mas não é a mãe. É o tio.

Está toda a gente na sala.

A tia levanta-se. Sacode as lágrimas como se sacode a chuva. O menino olha a camisola encharcada com algum aborrecimento mas encolhe os ombros. Os tios encaminham-se para a sala. Ele volta para trás, à procura do Rufus. A mãe não vai querer procurá-lo depois da chatice que vai ser explicar à tia que nunca desapareceu.

Na sala estão todos como a tia. De preto. Com aquela expressão. Escura. Pesada. Feia. O miúdo diz:

Vem aí a minha mãe.

E as mulheres rebentam num choro como o da tia. Os homens escondem os olhos com as mãos.

Vem mesmo. Ainda agora a vi a subir as escadas.

O tom já é mais alto. Mais zangado. A mãe não ia gostar mas ele também não gosta que não acreditem nele. Ninguém desvia o olhar, ninguém muda de posição. Não fosse o soluçar e pareciam estátuas.

Quando a mãe entrou na sala e mais ninguém a viu, decidiu que tinha que mudar de família.

quarta-feira, março 10, 2010

Sem Coração

Na vila toda a gente a respeitava mas a fama acompanhava-a mais que a própria sombra. "A Sem Coração". Assim a chamavam, com a simplicidade de quem dispensa explicações ou teorias.
Nunca se tinha apaixonado. Nunca o havia dito mas tão-pouco o escondia.

Era viúva no papel mas aquele homem primitivo que a levou ao altar e lhe amaldiçoava a infertilidade nunca lhe tinha provocado o mínimo sobressalto. Sempre lhe serviu a sopa com a naturalidade com que atirou o primeiro punhado de terra sobre o seu caixão.

Num final de manhã, sentada no alpendre a balançar sobre a própria solidão, sorriu ao carteiro que chegava e sorria. Como sempre chegou e sorriu. E, com aquele sorriso, chegou uma enorme onda quente, feliz, que se formava na boca do estômago e rebentava nas mãos, nos pés, no cabelo.

Antes que tivesse tempo de falar (só de sentir), caiu por terra. E aí ficou. Deixou de ser.

O destino resgatou-a ao desgosto de descobrir que o amor também morre.