terça-feira, abril 27, 2010

Não-conto

Nesta história não há pessoas.

Há uma cozinha. Uma porta aberta. Um jardim.

Há flores vermelhas e pássaros azuis e cogumelos.

Nesta história não há adultos nem crianças. 

Há frutos na fruteira e ímans no frigorífico.

Há sol-de-meio-dia e cheiro-de-terra-molhada.

Nesta história não há homens nem mulheres nem amores-assim-assim. 

Há canela e bolos no forno.

Há música de saxofone.

Nesta história não há pessoas porque estou cansada de pessoas.

Nesta história não há pessoas porque nem sequer é uma história.

terça-feira, abril 20, 2010

Mancha

Quando a mancha lhe apareceu no peito não se alarmou. Ao contrário da mãe. Da irmã. Da melhor amiga. 

Vais ter que ir ao médico.  

Ela assentia uma e outra vez, hum, hum, como quem ignora, como quem espera que esqueçam o formato oval, o tom vermelho-sangue, os laivos ondulantes que lembram uma

impressão digital

marcada a quente na áreola morena, no caminho circundante que o mamilo desenhou. 

Vais ter que ir ao médico. 

De novo. 

Hum, hum.  

De novo.

Não vai. Ela sabe o quem, o onde, o como e o porquê daquela mancha. Ela sabe sobretudo que não é uma mancha.

Não vai ao médico porque quer lembrar sempre a lição daquela mancha. Não quer o seu corpo como se nunca ninguém tivesse lá morado.

quarta-feira, abril 14, 2010

Escuro

A caminho da igreja lembrava a visita do dia anterior à cunhada. Nem o sol do meio-dia, cruelmente aferrado ao eterno luto das roupas, interrompia a ladainha mental da mulher que, uma e outra vez, revia a desgraça da cunhada entrevada. Revia o seu alheamento apático, o seu silêncio de tumba, os seus (raros) dizeres desconexos e incoerentes, as suas memórias toldadas e remexidas, as suas chagas de corpo acamado, a sua apressada doença de nome estrangeiro.


Ao som dos seus passos arrastados de 83 anos, a mulher tentava aclarar as lembranças de há um mês atrás, aquelas em que a cunhada, dando-lhe o braço à saída da missa, a arrastava num andar tremendamente forte e veloz, num passo que uma não acompanhava e de que a outra não abdicava. Lembrava-lhe o rosto espontâneo sob a ternura dos cabelos alvos, comovedoramente semelhantes aos do irmão de uma, dolorosamente parecidos com os do marido de outra.

Pousando a mão sobre a porta da igreja, temeu o dia em que ficasse, também ela, reduzida a sombra de si própria e, assombrada pela pungente imagem, agradeceu aos céus a lucidez .

Já dentro do edifício, saboreou por uns momentos a frescura que as paredes de pedra guardavam e, ajoelhando-se, começou a rezar. Ainda não chegara ao fim da oração e uma tempestade ergueu-se-lhe no fundo das entranhas.

Também o seu mundo escurecia.

quarta-feira, abril 07, 2010

Sempre noite

Pousou o menino do lado de fora da porta e ajoelhou-se para lhe apertar o casaco. Assim, quase ao seu nível, sentia-se ainda mais pequena, ainda mais impotente. O pequeno rosto sorridente, a contraluz, parecia ainda mais despreocupado, ainda mais desprotegido.

Pensou em recolhê-lo, voltar para dentro, para o pijama, o peluche, a manta azul. Aquela noite tranquila parecia querer engolir-lhe o filho.

O som de passos a subir as escadas interrompeu-lhe o pensamento.

Vamos?

A criança voltou-se e balbuciou uma expressão de contentamento. A mãe estremeceu, encolheu-se ainda mais no sorriso falseado.

De mão dada, o menino tropeçou na primeira escada, caiu, chorou. Se falasse, podia jurar que foi o pessimismo que o empurrou.

quinta-feira, abril 01, 2010

Pólvora

Já não sabe como chegou ali nem porquê. De braço estendido,

de alma encolhida,

de arma na mão.

A mão, envolta no revólver como se sempre tivesse sido assim, sangue e pólvora cobertos de pele e aço, assim perdida a fronteira entre humano e desumano.

O outro chora, treme, implora, ajoelha-se num alinhamento perfeito com o cano do objecto que ameaça, prepotente.

Para ele é tudo silêncio. O tempo escorre leitoso, preguiça lentamente sobre aquele momento, como sonho. Como pesadelo.

As lágrimas acordam-no. Não as do outro. As suas.

Largou o revólver no chão quando um tiro de realidade o atingiu em cheio na alma.