sexta-feira, dezembro 09, 2005

Só palavras

Quando ela lhe disse que não o queria ele saiu. De costas voltadas não viu os lábios dela esboçarem, em silêncio, a palavra "perder".

sexta-feira, setembro 16, 2005

A palavra

Era uma palavra saltitona, temperada, selvagem até. Fugia de boca em boca, da vontade dos que a queriam dizer para o embaraço dos que não a diziam. Não parava nunca. Era um grande mistério, presumia a palavra, de peito cheio de orgulho emproado.
Ria. Ria gargalhadas líquidas, como cascatas de matas escondidas e brincava por entre as chamas dormentes do pôr-do-Sol.
Um dia, na hora do jantar, a palavra gostou do céu da boca do rapaz. Acomodou-se, para uma sesta rápida. E o rapaz, sem luz de velas, sem pôr do Sol, sem cascatas ondulantes, gaguejando sem ser gago, falou do Amor. A rapariga ficou como estátua de gelo expectante.
Vendo-se assim, usada, abusada, a palavra acordou da sua sesta ofendida e saiu daquela boca jovem para não mais voltar. "Só tenho sossego na copa das árvores" dizia, enfurecida.
O rapaz, sem a palavra selvagem, não disse mais que palavras gastas, vendidas de porta em porta. A rapariga riu e foi embora.
O rapaz nunca mais falou do Amor, mas há quem diga que, ainda hoje, todas as noites, pela hora do jantar, quando as crianças descem da brincadeira na copa das árvores, um velhinho encostado ao tronco ergue os olhos para o verde, como se esperasse alguma coisa que vai cair.

domingo, setembro 11, 2005

Tempestade

Soube que o mar tinha chegado assim que abri a janela. Sentei-me no alpendre e deixei o vento despir-me. Apressado, irreflectido, sensato. O pano que cobria o meu corpo perdeu o sentido, envolto em folhas e areias e pedaços de céu. A montanha ondula sem saber para onde vai. Engole-me, envolve-me, suspiro. Elevada no ar deixo-me chorar. Pode ser que o mar chegue mais depressa.

domingo, julho 17, 2005

Cor-de-fogo

Tu choras lágrimas de cera e eu já não acredito em velas. Quando voltares a ser vulcão eu serei cinza e pousarei um pouco por todos os lugares que acordaram quando a noite se fez fogo.

segunda-feira, julho 11, 2005

Licor

Vês? Sorvo-te. Deste cálice o líquido verte-se como fera predadora sobre os meus lábios. Bebo-te de um só gole. Sinto-te a correr por dentro de mim. Ardes-me, dóis-me, magoas. Ouço as tuas garras a arranhar o meu esófago. Estás dentro de mim. Já não tenho sede.

segunda-feira, junho 13, 2005

Bom dia

“Olhaste para mim hoje. E viste-me. Os teus olhos surpreendidos pela surpresa do sorriso dos meus. Os meus olhos que te sorriram pelas tréguas que o coração declarou, num ultimato que se tem repetido no tempo.

Tu, desprotegido, numa solidão de nudez. Eu, segura, numa outra solidão que me faz forte. A minha solidão e a tua, unidas, durante algumas gotas de tempo, para deixarem de ser solidão e passarem a ser nada. Nada para além de mim e de ti, dois eixos unos de cosmos que se alinharam num só momento, por piedade ou por acaso, já não importa.

Ao choque que te causou o meu atrevimento seguro, seguiu-se o teu sorriso. Tímido e logo universal. Invadindo todo o espaço, sé eu e o teu sorriso.

E os teus olhos… Olhos que eu havia perdido num tempo que já não é hoje nem vai ser amanhã. Olhos que eu havia perdido num tempo que já foi. Olhos que tenho encontrado vazios, frios, inertes, como duas estampas sobre o lugar onde antes viviam dois relâmpagos de água.
Senti-os de novo hoje, como tesouro encontrado quando já não se procura. Confiaste-me os teus olhos e eu soube acolhê-los nos meus, com a simplicidade que um tesouro merece.

Viste-me hoje, como pela primeira vez. Como fazias todos os dias no tempo que já não é tempo. E é mesmo a primeira vez que me vês. Porque eu não sou a mesma.

Mas tenho o meu olhar guardado em ti, seguro por não saberes que o tens contigo. Entrega-mo quando o tempo determinar que hoje é um bom dia para me devolveres o coração.”

Hoje foi um bom dia… porque não há noite tão longa que não veja o Sol nascer.

segunda-feira, junho 06, 2005

Sono

Durante aquela hora em que te aconchegaste no meu colo descansei mais do que em todo o tempo que já percorri. Sentir-te, pequenina, nos meus braços não foi sentir-te frágil nem sentir-me impaciente. Foi sentirmo-nos magia, luz invísivel de um céu estrelado.

Durante aquela hora deixaste-me ser o que sou. Foste tu que me carregaste no colo. Eu deixei-me abandonar nos teus braços como planície. Voltei a ter no pescoço aquele irresistível perfume a bebé. Voltei a ter no olhar a confiança de quem não vê no mundo razão para se proteger. Voltei a ter nas vozes o meu maior laço com os que amam. Voltei a não perceber o que dizem. Voltei a sentir como dizem. Voltei a ficar nua, despida, espontânea, natural, embrulhada nesta pele que me dá forma.

Ao meu colo foste tu a que, equilibrada nuns quaisquer tacões, me embalaste num sono que durou a minha vida inteira. Volto atrás e deixo que agora semi-cerres o céu dos teus olhos e sonhes o sonho que já foi meu, afilhada.

quinta-feira, junho 02, 2005

Nós

"Sei que ainda guardas mil estrelas no colo
Eu, tantas vezes, ainda acredito que mil estrelas são todas as estrelas que existem"

Porque eu não sei quantos oceanos tiveste que atravessar na tua viagem para chegar até mim, mas sei que guardo comigo o momento em que te fizeste onda e me deixaste para sempre no corpo este cheiro a mar.

domingo, maio 29, 2005

A pensar em ti...

Ontem adormeci a pensar em ti... Hoje acordei a pensar em ti... Mas só ontem, e só hoje, porque para nós não há amanhã...Tu não sabes mas eu despedi-me de ti e do que tu foste para mim... Despedi-me rodeada por bancos de pedra que sentiram o calor dos nossos corpos abraçados num só, rodeada por flores que pressentiram cada batimento ousado de um coração que respira fundo, rodeada por árvores centenárias que podem esquecer-nos no peso de uma vida tão longa, mas que eternizam nos seus ramos de abraço um sentimento que não conhecem e não entendem. Rodeou-me o vento e juntou ao rio, que tantas vezes nos viu passar de mãos dadas, as lágrimas que já não conseguia derramar. Ouço o cair de outras lágrimas agora que eu parei de chorar. Mudas só as escassas folhas que já não moram no alto dos ramos. Quantas vezes atapetaram o chão que pisámos, para que o mundo nos parecesse sempre suave e seguro, feito à nossa medida... Mas o vento seguiu o seu curso e levou esse tapete mágico... Agora piso a areia, áspera, dura, fruto de uma erosão desoladora, tal como nós...A areia ergueu-se e construiu um muro tão triste como ela, que nos separa e nos separará indefinidamente. Mas junta a tua mão a esse muro, que eu farei o mesmo deste lado. E enquanto sentir um átomo do calor da tua mão na minha, mesmo que só com a imaginação, não digo adeus, mas até sempre...

Por todas a vezes em que procuro a nossa imagem, parada no tempo, por entre estas árvores...
Porque hoje tudo parece ganhar um novo sentido.

terça-feira, maio 24, 2005

Não te espero

Espero-te como quem não espera, perto desta árvore. Espero-te como quem não espera longe da sombra dos seus ramos para me envolver num abraço de luz. Espero-te como quem não espera onde os raios do Sol embalam a alma num sonho quente.

Espero-te mas é como se não o fizesse, porque quem espera tem a ansiedade de deixar de esperar. E eu estou serena e às vezes esqueço que podes chegar.

De olhos fechados não consigo ver-te. Não imagino os traços suaves do teu rosto nem sei qual é o toque dos teus lábios cor-de-rosa. No lugar dos teus olhos, duas pedras sem valor. Tem o brilho de um lago, mas não te reflectem, só me devolvem a minha própria imagem. Passo os dedos nos fios do teu cabelo cor de nada e entre os meus dedos só ar. De olhos fechados tu não és aparição.

De olhos abertos adivinho a melodia da tua gargalhada, sinto a frieza da tua mão numa manhã de Inverno, ouço o ritmo da tua respiração quando corres para mim, cheiro o teu aroma de mar revolto. De olhos abertos perco-me nas profundezas do que serás para mim.

Espero-te como quem não espera porque na espera há a esperança. E a esperança pesa porque não é mais do que o pessimismo disfarçado de ilusão. E eu não tenho esperança: sou feliz porque sei que virás.

Não te espero maduro ou carinhoso ou sensato. Não te espero perfeito. Já nem te espero…

E quando chegares podemos deitar-nos à sombra desta árvore. Porque o abraço do Sol vai ser tão pequeno.

domingo, maio 15, 2005

Abraço de mar

Se partires, não me abraces- a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota de um navio. Se partires não me abraces -

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém- longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera que a dor desapareça.

Se me abraçares não partas.

Maria do Rosário Pedreira

segunda-feira, maio 09, 2005

Insónia

Esta noite adormeci quando a lua já se havia cansado de iluminar o céu. Invasores imaginários de recordações ocuparam a minha cabeça e o corpo, resignado, não pôde descansar.


Olho à minha volta e não sei para onde ir. Tento respirar fundo. Não consigo. O ar escasseia como a minha calma. A noite é quente, de um calor que sufoca, abafa, desespera. Quero andar mas sinto nas pernas o peso e a frieza de dois blocos de mármore. Fecho os olhos. Sussuro: "Estou sozinha". De novo. "Estou sozinha". O cerébro acena mas o coração faz a birra da negação. Não entende e por isso não aceita. Abro os olhos. Olho em volta. Manchas de rostos de tinta fresca a escorrer. Não são meus. Fecho os olhos. Sei que o coração já não chora. A expressão é vazia. Envelheceu na velhice precoce e amargurada de quem, por um momento eterno, ficou invisível e desapareceu do mundo.
Movo uma perna. Logo a outra. Não parece tão difícil assim. Vá, vai passar num ápice. Não passa. A mão suada que me segura o pulso com as veias a rebentar de pressão.Não conheço o teu toque.Quem és tu?Que medo tão profundo te faz abraçar-me contra a minha vontade?Tu nem sabes o meu nome. Poderás saber o verde dos meus olhos mas nada mais. Não sabes que a minha mãe me chamava pelos 2 primeiros nomes quando eu era pequena e fazia asneiras e eu não sei porque é que a tua mãe não te deu o abraço que tu procuras em mim.Não sabes que faço caracóis nos cabelos quando fico com sono e eu não sei porque é que procuras no álcool a serenidade que o sono te podia trazer. Não sabes quem são os que eu amo... nem nunca vais saber. "Não te deviam deixar sozinha.Eu não te deixo sozinha". O desespero de um abraço de prisão que me pareceu que ia durar até que os sentidos desistissem.Ou envergavas a força de mil montanhas nas correntes que formavas à minha volta ou eu fiquei com a fraqueza de uma pluma. Ou ambas. "Solta-me". É a única verdade que sai da minha boca. Tudo o resto é mentira. Engano-te. Tu sabes que eu não vou ficar perto de ti quando me deixares. Mas mesmo assim digo-to."Solta-me". E no que pareceu uma falha de atenção mas que se assemelhou muito a uma oportunidade piedosa soltaste-me.Não disse obrigada nem senti.Com a leveza da irracionalidade corri.Corri para perto de quem me abrigasse, para longe de ti. Não te quero ver mais porque és a face do que não quero sentir. "Sozinha..."; "sozinha...".


Desaparece e leva contigo essa verdade que não me deixa dormir.

domingo, maio 08, 2005

Quando as palavras não bastam

Desde o primeiro dia ansiei por estes momentos. Ao ouvir as vozes de negro esperava tornar-me numa delas e deixar de ver no chão o reflexo da minha face. Os primeiros dias… Caminhei sozinha por um corredor estreito, escuro de negro, ainda cambaleante porque me haviam levado uma parte de mim. Vozes de bocas desconhecidas, olhos que não me viam.

Sem que disso me apercebesse as vozes começaram a preencher-me, sorrisos tímidos foram surgindo e logo olhares que pousavam sobre mim. Olho à volta e já não estou sozinha. Agora só um espaço de luz a perder de vista e descobertas vestidas de negro e azul escuro. As faces já têm nomes, histórias, já são únicas no seu valor.

A união brotou com a naturalidade da água a correr, os laços apertaram-se na convicção de que jamais alguma das partes do todo ficará sozinha.

E assim chegamos ao fim de uma fase tão mágica: a fase da inocência, do idealismo, da descoberta. Agora impõem-se a maturidade e o bom senso que as vozes de negro nos ensinaram à sombra de uma floresta feita dos encantos dos que por lá passaram.

Trajar foi sentir-me grande em mim mesma. O bater dos sapatos em uníssono pela rua foi o bater do coração. A mancha negra espalhada pela Cordoaria foi o tamanho da saudade e da alegria. O primeiro acorde… E só ficamos eu, a minha madrinha e o manto da noite que me envolveu. As gotas de água brotavam do infinito e do céu dos nossos olhos numa bênção que pareceu celestial. Flutuei sobre mim mesma tal como o choro da guitarra enquanto sentia as mãos dadas numa só. Abracei dentro da minha capa, como dentro de mim, aqueles que fazem o coração respirar fundo.

Nasce o Sol, radiante para nos ver, e segue-se um momento em família. Unidos em corpo e alma os aplausos foram o som do orgulho por todos os que começam uma nova etapa. Cartolando e vestindo o bolso ou a pasta de azul escuro todos fomos vencedores.

Seguiu-se o cortejo. Um desfile de euforia, de orgulho. Gritos e canções de pulmões cheios de recordações e esperanças. Saltos que nos elevavam a um céu que nos acolheu de braços abertos. O Sol apresentou-nos luminosos à cidade do Porto e a sombra só nos cobriu quando a tribuna se aproximava. Sombra por fora e por dentro. O frio da reflexão, da introspecção, da recordação. A tribuna ficou para trás e com ela os momentos de t-shirt azul escura e mãos negras de terra, ásperas mas sempre estendidas.

Olhar para o passado nunca impede de imaginar o futuro e há coisas que permanecem na memória e no coração ou até mesmo no tempo quando ele decide ser piedoso. Os momentos e as pessoas levo-os comigo para sempre. Obrigada.

segunda-feira, abril 11, 2005

Nada

Vazio fica o que perdeu o que o preenchia.
Vazio é o nada, o ninguém, o coisa nenhuma.
É o solto, o perdido, o sem destino.
Vazio é o ser sem saber ser.
Vazio fica o ser que não quer ser.
Vazio são as palavras que ninguém ouve.
Vazio é o corpo sem alma.
Vazio é a razão sem coração.
Vazio é o tudo que é nada.
Eu sou tudo. Eu sou nada.
Vazio sou eu.
Eu sou o teu espaço a meu lado, vazio por estar tão cheio da tua ausência.

terça-feira, abril 05, 2005

Uma história feita de saudade

O teu cheiro a água salgada quando chegavas pela manhã. Sorridente se o mar te tinha embalado em serenidade, taciturno se o mar teimava em fazer birra e não te deixar domá-lo.

Sempre tão orgulhoso, tão nobre, ao comando do Vimar, o barco mais orgulhoso e mais nobre que o horizonte já viu. Recebias a brisa com a serenidade com que acolhias a tempestade. Nada era um problema demasiado grande porque "o mar te conhecia".

O sabor das ondas era o sabor da tua vida. E ensinaste 9 filhos a apreciar um sabor tão salgado como doce.

Doce como a tua voz quando me vias acordar e me perguntavas, com pretenso ar aborrecido, se queria que me preparasses o pequeno almoço. Doce como o sabor do pão embrulhado no leite que me preparavas. Doce como a bondade anónima que te levava a chegar a casa de bolsos vazios. Doce como o calor da tua mão quando me dizias que "a fieira ficava comigo".

Doce como a saudade que agora sinto...

"o teu sopro de saudade vinha beijar-me de hora a hora, para ficar mais à vontade mandei a saudade embora"