domingo, janeiro 30, 2011

Visão

Quando Noé nasceu, ninguém percebeu que havia nele algo de diferente. Era um ser aparentemente normal e normal era tanto quanto se desejava. Não houve quem desconfiasse de coisa alguma durante a infância. Nem Noé, nem a família. Só na adolescência, com o frutífero convívio com rapazes e raparigas da mesma idade, percebeu que a sua visão da realidade era líquida e fluída e não viscosa e estagnada como a dos demais. 

Noé tinha a límpida capacidade de percorrer o tempo sem  obedecer a leis de linearidade. Olhava uma criança e via-a, com nitidez e realismo, já velha, cansada, já pai e avô de outras crianças como ela. Olhava um idoso e, involuntariamente, perscrutava-lhe os tempos de infância e podia mesmo jurar ser capaz de lhe acariciar os inocentes caracóis. 

De início, atribuiu o facto a um qualquer tipo de vidência. Já tinha ouvido falar de pessoas assim e a repetição do fenómeno, ainda que minoritária, era reconfortante. Foi com crescente desalento que percebeu que os videntes que visitava o eram só em horário de expediente. 

Noé não previa acontecimentos, situações, catástrofes. Noé via, ainda que não o desejasse, o tempo dos outros num escorrido relógio de areia. Tolerava, por isso, melhor todos os defeitos da natureza humana, porque os entendia em perspectiva. Não havia, para Noé, falha ou qualidade permanente e a paixão tornava-se, assim, o único marco temporal distante. 

Um dia, ouviu-a atrás de si. Foi pela voz cálida que se apaixonou. Não pelos olhos de caramelo nem pelos cabelos amenos. Não se permitiu vê-la. Por uma vez, desejou ver um presente que não fosse futuro ou passado. Foi com determinação que entrou em casa do mais velho dos videntes.

Cegue-me, por favor. 

domingo, janeiro 23, 2011

Revolto

Não sabe como ficou assim. Já nem sabe quando. O mal-estar chegou levemente e deu lugar a uma irritação espontânea, que a pouco e pouco se foi ancorando como navio cansado de viagens. A alegria alheia causava-lhe uma impaciência que abeirava a cólera e as gargalhadas, os sorrisos, os abraços eram, para ele, um repugnante espectáculo de humanidade.

Reconhecia-lhes, aos outros, as expressões. Num qualquer tempo passado, como noutra vida, recordava-lhes o efeito na sua própria face, o calor ruborizado, a tensão ascendente dos lábios arqueados, o impulso ancestral do contacto físico. Perdeu-os.

Não sabe como. Já nem sabe quando.

No autocarro, como todos os dias, ergueu um silêncio imponente em sua volta, vítima de uma quarentena auto-prescrita. Olhou o chão enquanto murmurava pensamentos soltos, tentativa inútil de evitar que a felicidade dos outros lhe penetrasse o sistema nervoso.

No banco da frente, uma criança ria. Puxava os cabelos da mãe e ria desalmadamente.

Ele irritava-se.

Irritava-se a mãe.

A criança puxava e ria, ria, ria.

No banco da frente, a mãe eleva a mão aberta, remo pronto a abater-se sobre as águas agitadas da criança, e ele, firme, agarra-lhe o pulso com uma veemência tal que a mulher temeu nunca mais recuperar a vida do membro cativo.

Não sabe como. Mas sabe quando e porquê.

sexta-feira, janeiro 07, 2011

Amor-perfeito

Chegou a casa. Bateu a porta, lançou as chaves na direcção da tina, sem se importar com o tilintar turbulento do bronze de umas contra o bronze da outra. Encostou a bengala ao sofá. Olhou-a.

Ela, olhos fixos num horizonte imaginário, não o viu. Assim era sempre. Alheada, habitante solitária de uma bolha flutuante.

Não deixou de a olhar, como se essa fosse a derradeira forma de contacto, última esperança de uma ligação suspensa no tempo. Na face dura, ele trazia os sulcos talhados por discussões, sorrisos e esperanças. Há muito que ele deixara de ser ele para passar a ser monumento do amor a ela.

Levantou-a, falou-lhe de tempos futuros e ela ouviu tempos passados. Vestiu-lhe o casaco, penteou-lhe os cabelos cor-de-cinza e, guardando-lhe o braço debaixo do seu, saíram.

Na rua, passeava ao ritmo dela e nunca deixava de falar, sem a olhar, imaginando a resposta, a nova pergunta, a gargalhada.

De súbito, à sua frente atravessou-se um rapaz, que corria num entusiasmo veloz em direcção a uma rapariga de sorriso tímido e coração aberto. Beijaram-se.

Lon

ga

men

te.

O beijo não acabava e ele, sem a olhar, preocupava-se que a cena fosse pouco própria para os olhos dela. Não viu, por isso, que ela, por um segundo, o olhou e lhe disse, sem falar

Desculpa.