quarta-feira, junho 21, 2006

Limpezas

Quando a mãe lhe perguntou o que estava a fazer respondeu, ainda remexendo no estojo, com o ar mais distraído do mundo "Estou a pintar a minha alma". A mãe arqueou as sobrancelhas dos olhos esbugalhados num primeiro medo de demência infantil, mas depressa encolheu os ombros zombeteiros e continuou a aspirar o tapete.

O miúdo, inclinado sobre a mesa, de língua de fora e joelhos fincados na cadeira, travava a luta da sua vida com uma folha invisível. Fazia pressão para baixo, depois puxava para a direita, inclinava para a esquerda até que, num golpe de mestria, cravou os cotovelos, esfolados de outras lutas, na mesa e sossegou. Sem nunca tirar os cotovelos da superfície de madeira escura, tirou o lapis de cera mais pequenino da caixa. Pintou a folha invisível com grandes pinceladas de laranja-água e desenhou duas bolinhas paralelas e um sorriso logo abaixo a vermelho-carvão.

De repente, deixou-se escorregar da cadeira e com o ar mais cansado e aliviado que alguma vez se viu num miúdo, disse: "Já está. Agora que a vejo nunca mais a perco." E saiu.

A mãe, malabarista de canos de aspirador e panos do pó, num relance de inspectora de higiene e limpeza, gritou horrorizada ao ver a mesa pintada com lápis de cera. Borrifou um pano com líquido apaga-tudo e apagou a alma do miúdo.