quinta-feira, novembro 29, 2007

De terra e de mar

Num arrebatamento de irreverência mais do que de cansaço cravou a enxada na terra seca e caiu de joelhos. Gotas de suor partiam desencontradas da fronte para se unirem silenciosas no maciço pescoço enrugado.
Com as mãos sujas, mãos de terra e de sol, cobriu os dois olhos de trevas. E nas trevas um barco pequeno e um mar revolto e uma luta justa com um magnânimo peixe e o encontro com as sereias e as solitárias conversas com o deus dos mares e a frescura de uma felicidade de sonho. Lá longe, no grande azul, o Sol já se punha.
A inoportuna consciência do trabalho por fazer acordou-o.
Mãos de terra e de sol no cabo nodoso da arrogante enxada. Um puxão. E nada. Outro. E a inércia. De costas vergadas pelo esforço, de olhos arregalados pela força, tombou. O torpor da enxada diluía-se nele. Deitado, fechou as pálpebras morenas e chorou. Vertia na terra o mar que sempre trouxe dentro de si.

quinta-feira, junho 14, 2007

Pequeno Amor

Não era um grande amor nem sequer um amor assim-assim. Cheirava a água e nos passos trazia um som cor de cereja. Os pesados caracóis de canela pendiam em cachos sobre os olhos transparentes e nas mãos de pardal trazia uma romã.
A velha levantou os olhos do bordado e viu-o chegar. Quase delicado, quase cambaleante, cada um dos passos que o tornavam mais e mais próximo da postura ancestral da mulher deixava no chão de pedra uma marca de areia.
Quando pousou a mão sobre o ombro da velha que o tempo havia feito gruta, fê-lo com firmeza e com um sorriso ondulante que a fez lembrar a sua primeira e única viagem de barco.
O baloiçar da cadeira parou a um gesto dele. Com a sensualidade e o cuidado ternurento de quem despe a amada, ele abriu a romã. Trincou o interior rosado e o fruto pareceu ceder a um arrepio de carícia. Voltou a trincar, uma e outra vez, num prolongamento cruel do olhar cansado e atento da velha, pousado sobre os lábios e os bagos sumarentos.
Depois de segundos eternos os lábios dele selaram-se e, com ansiedade, estendeu-lhe o que restava do fruto gotejante. A frágil mão dela envolveu o pulso dele e empurrou mão e fruto com determinação. Não provou. Não ia sujar o bordado.

O ranger da porta havia já antecedido outro e outro e outro pequeno amor.

quarta-feira, maio 02, 2007

Pegadas

Os meus sapatos estão cansados. Rasgados, alargados, sujos. Sapatos.

Suportam três anos de pesos pesados e outros mais leves. Carregam tons de negro e azul por dentro. Trazem pedaços soltos de solos e lembranças por fora.
Os tacões gastos esqueceram já a determinação de contar quantos foram os pisos que galgaram em corridas escuras e esvoaçantes. Perderam a ansiedade de descobrir novos trilhos. Deixam-se ficar, preguiçosos, no único chão que reconhecem como seu e é sob a melancolia do cheiro a terra molhada que lembram o melódico eco do toc-toc pela calçada.

Sapatos. São só sapatos. Mas eu não posso continuar descalça...

sábado, março 17, 2007

Dia

Na escuridão do quarto a menina rezava para que a noite acabasse. O seu deus de peluche recebia do alto da prateleira promessas de bom comportamento e de beijinhos às tias feias em vez das habituais caretas. As palavras brotavam baixinho e fluiam em cataratas sem sentido. De olhos fechados, a noite não parecia menos noite e o dia não chegava.

O choro baixinho deve ter acordado o abraço que chegou e abriu a janela.

O dia era branco, claro. E o abraço... quente, quente.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Raízes

Nascera naquela falésia sem saber como nem porquê. As gotas de água salgada que as ondas lhe traziam todas as manhãs já não a feriam. Recebia-as menos por obrigatoriedade do que por brincadeira. O cheiro a mar era tão forte que fez dele o seu perfume, sem nunca se questionar qual era o seu. Por ali não havia nenhuma outra flor, mas não havia solidão que a importunasse. No seu mundo era única e não perdia tempo a imaginar que pudesse haver outras com raízes, folhas, pétalas e caules iguais aos seus.
Um dia o vento trouxe-lhe um cheiro estranho. Cheiro acre de homem. Um passo, outro passo e logo uma mão áspera na sua corola e um nariz bisbilhoteiro encavalitado no seu cálice. Os anos avançados do senhor estavam assombrados com a visão de uma existência tão delicada num ambiente tão agreste. Achou-a a mais bela flor de sempre. Fez um buraco no solo que a acolhera durante tantos anos, retirou cuidadosamente as raízes e levou-a consigo.
Plantou-a no seu resplendoroso jardim, junto de tantas outras flores tão delicadas quanto intocáveis. A obesa mulher saiu de casa e num relance ditou a sua sentença: "Coisa mais feia! Não é uma flor, é uma erva daninha." E na verdade, mesmo aos olhos do jardineiro, junto das outras, a flor parecia mais feia, mais seca e definhada. Regou-a uma primeira vez e esqueceu-a.

Sempre foi a minha preferida pela personalidade forte, mesmo quando as pétalas foram caindo uma a uma no chão. Ouço um murmúrio que me diz que o cheiro a terra molhada a incomodava. Mas pode ser só alucinação trazida pelo mar, aqui, no mesmo sítio onde o meu pai a encontrou.

terça-feira, janeiro 30, 2007

Gosto

Gosto de pensar que, quando escrevo, alguém vive intensamente os meus textos. Gosto de pensar que quando não escrevo por longos períodos de tempo é porque estou a viver intensamente.