segunda-feira, setembro 19, 2011

Interior

Envergonhavam-na as roupas repetidas, o cabelo infantilmente penteado, as refeições velozes e amadoras. 

Agora que sabia contar, sabia que, com sete anos, devia multiplicar-se como mãe da irmã de cinco e subtrair os dois pais incertos a quem se somavam incontáveis embriaguezes.

De manhã, à abelhuda e repetida questão da auxiliar sobre o pequeno-almoço, respondia com a mais insondável imaginação e apetite. Adivinhava as abundantes refeições matinais dos colegas e, no falar e no pensar, degustava-as com a irmã. A mais pequena, de espírito ainda alheio às traquinices do ego, negava com vibrante indignação. 

Croissant com queijo e leite com chocolate? Mas nós nem jantámos, mentirosa!

Ela fincava convicção e fartura e era só a mais pequena quem inaugurava o estômago.

Nos dias de natação, fingia medo da piscina com a irmã por vergonha do banho. Não era a nudez que a incomodava mas o momento que o sucedia. A mesma cor, o mesmo odor. 

A mesma roupa interior.

Um dia, soube da mais nova já no duche do temido balneário. Fintara a irmã e, já nua, já contente, já chapinhante, gritava que as educadoras lhe iam dar umas cuecas lavadas. Envergonhou-se. 

No dia seguinte, entrou na escola triunfante. A saia amarela destoava do vermelho da camisola de lã mas, em propositadas ondulações, deixava à vista umas orgulhosas cuecas lavadas. Numa corajosa incursão nocturna, driblara o bafiento hálito dos pais e encontrara a caixa de cartão onde a negligência fazia as suas roupas reféns.

O merecido prémio que envergava permaneceu durante dias, teimoso, até ter a mesma cor, o mesmo odor. 

Até ser a mesma roupa interior.

segunda-feira, setembro 05, 2011

Rainha

Deitada na cama, empurrou o cobertor e deixou a descoberto o corpo vazio. Olhou, demoradamente e sem pena, mãos, pés, pernas, mamas, braços descarnados que não eram seus. Abandonada a guerra que travava há dois, dez, cem anos, era só paz o que vestia.

Ligou à amiga de sempre. Sempre suave, sempre quente, despediu-se com um até sempre, Aurora.

Ligou aos filhos. Chamou-os. Riu com as suas lágrimas e pediu, menos por vaidade do que por piedade da dor deles, que a fizessem bonita. Sorriu sempre, com o sol que trazia no peito. Quis beijos de boa noite. E a noite chegou. 


Deitada no longo carro negro, partiu para a terra onde começou. Ia a meio o caminho quando a viatura falhou. Negro o carro, negro o fumo, negro o espírito dos que o seguiam. O filho, entendido nas artes da mecânica como nas artes do amor, quis conduzi-lo apesar da relutância do negro condutor. Sem mais quebras, a máquina deslizou até ao destino.

Foi muito sussurrada a engenhosa habilidade do rapaz mas, adormecida, ela sabia que, de estranheza, o episódio teve só o que de estranho tem o amor.