segunda-feira, junho 21, 2010

Outra vez

As roupas eram as de trabalho. Deixara as calças de ganga, as sapatilhas e a larga t-shirt bege no lúgubre quarto da pensão. Ainda se estranhava dentro dos sapatos de tacão gasto, da micro-saia, do decote vulgar que eram o marketing do produto que ela era. A lingerie era vermelho-luto, vermelho-luxúria, vermelho-colo, variável do daltonismo dos olhos que a viam.

Ainda o Sol não a vira por cinco minutos (ou uma hora, ou um dia, não sabe dizer) e já subia as velhas escadas de madeira da pensão. Acompanhada.

O rapaz da recepção baixa a cabeça, baixa o tom, baixa os olhos tristes, baixa a pena que tem dela. Como sempre, finge não a ver. Ela agradece, em silêncio, envergonhada dessa vergonha que só aparece ali, na recepção da pensão, no rapaz dos olhos tristes.

Lá em cima, no quarto, veste-se de nudez e é o papel do amor que representa com perfeição. Os gemidos têm tempos coordenados, o alinhamento contorcionista tem jeitos de didascália, as posições sucedem-se como no ensaio geral. No final, extenuada, sente-se mais actriz que prostituta. Faltam-lhe os justos aplausos mas, quando a nota desce sobre a mesa-de-cabeceira, encolhe os ombros e esquece as luzes do palco. Esquece o elenco, esquece o guião, esquece o desempenho. (Só) Assim sobrevive.

Desce os degraus rangentes do esquecimento e, na recepção, pela primeira vez em muito tempo, pára e olha o rapaz. Como pressentindo os olhos dela, ele ergue a cabeça, ergue o tom, ergue os olhos tristes. Ela segura-lhe a mão com o coração descontrolado. O sangue acorre, desenfreado, para aquele ponto quente em que a pele dele e dela se tocam. Não há explicação. Nem dele, o rapaz da recepção, dos olhos tristes. Nem dela, a prostituta, a actriz. Mas acontece.

É ela quem o guia até ao quarto mas, depois disso, não há comandos, não há líderes, não há papéis. Os olhos dele perdem a tristeza e ele olha-a como pela primeira vez, despida de roupas e defesas. As mãos dele perdem a timidez e toca-lhe o corpo abandonado pela primeira vez. Ama-a, também pela primeira vez. Ela, assim amada, é outra. Não a prostituta, não a actriz, não a rapariga das calças de ganga, das sapatilhas, da t-shirt bege. Ela é, tanto quanto se pode ser, pela primeira vez.

Não sabe ao certo quando deixou de ser mas presume que foi quando ele lhe pousou a nota na mesa-de-cabeceira.

Ele, o rapaz dos olhos tristes outra vez.

quarta-feira, junho 09, 2010

Tique-taques

Acariciava o ventre com jeitos de mãe-natureza e, pensativa, séria, sentia com a imaginação toda a formação de um ser humano
ali mesmo

dentro de si.

Nos ouvidos, na cabeça, no corpo todo era aquele

tique-taque, tique-taque, tique-taque.

O tempo levava-lhe a melhor naquela corrida sem meta à vista mas não duvidava nunca que ia acontecer. Era como se a criança estivesse desde sempre

ali mesmo

dentro de si

só à espera de ser.

Quando o milésimo pauzinho se enrubesceu pela primeira vez de cor-de-rosa, contou-lhe com toda a naturalidade do mundo.  

Está aqui mesmo, dentro de mim.

No dia seguinte, no lugar dele estavam o guarda-roupa vazio, o perfume e o bilhete 

Não pode ser. É demais para mim agora.

Ela ouvia o tique-taque do relógio biológico. Ele ouvia um tique-taque de explosão.

Para ele não podia ser. Para ela sempre fora.

quinta-feira, junho 03, 2010

Inútil

O tempo levou-lhe cabelo, flexibilidade, energia. O tempo levou-lhe a juventude e trouxe-lhe a velhice. Trouxe-lhe dores e rugas e sinais. 

Aos 80, falava muito pouco ou nada. Eram mais as vezes em que a boca se abria para entrar comida do que para sair palavra. Naquela viagem de comboio de três horas, com a irmã (quase tão velha) e a neta (ainda tão jovem), falou unicamente para perguntar em que estação deveriam sair. 

Assim era desde que se tornara viúva. Toda a família atribuía o silêncio ao trauma da perda. Mas não era assim.

És um inútil.

Assim dissera ao marido. 

És um inútil. 

Na sua cabeça as palavras repetiam-se até à erosão, até deixarem de ser palavras. 

És um inútil. 

Foram as palavras inúteis de uma inútil discussão. Foram as últimas palavras que o marido lhe ouviu. 

Não extraiu dali desgosto, só uma lição. Agora media as palavras. Com regra e esquadro mental, escrutinava-as com métodos alquimistas. Só as verdadeiras passavam a barreira do silêncio. Só as que faziam sentido.

O tempo levou-lhe juventude, mas ainda não lhe levou a memória.