quinta-feira, dezembro 30, 2010

Quadro

Nunca se interessara por pintura ou escultura e, no geral, tinha uma certa aversão à palavra exposição. Soava a tédio unilateral, desinteressante, sem envolvência. Acabara perdida naquela mais por falta de propósito do que por intenção, arrastada pelas amigas apreciadoras e entendidas.

Caminhava frente aos quadros, desatenta, alheada, quase insolente. Um pouco atrás do grupo, desfilava indiferente aos comentários entusiasmados, às exclamações de aprovação e aos esgares de repúdio. Foi então que uma qualquer forma atípica de magnetismo lhe atraiu o olhar para a pintura.

Azul.
Azul.
Azul.

O mar azul, a ilha azul, azul o céu também. Eram as sombras que definiam os limites no azul forte e vivo que inundava toda a pintura. Cenário de tempestade, de naufrágio, de noite cerrada que tenta amanhecer.

Sentiu uma atracção quase doentia pelo quadro e, mergulhada num torpor hipnótico

Quanto custa?

À estupefacção volteada das amigas sobrepôs-se o valor. Assustador, desmedido, imenso. À falta de fonte de tais rendimentos, passados alguns meses, esqueceu quadro e paixão.


Quando, anos mais tarde, a terrível notícia lhe chegou aos olhos, era o quadro vivo à sua frente. Cenário de tempestade, de naufrágio, de noite cerrada que tenta amanhecer. A onda abateu-se também, invencível, sobre ela e também ela desapareceu. Nunca um quadro custara semelhante valor.

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Bailarina

A culpa é um líquido viscoso que se cola ao interior do corpo e se deixa ficar, parasita intocável de alegria e dignidade.

A caneta interrompeu-se no papel para logo recomeçar, mais abaixo, dançante de traços curvilíneos que descem e sobem e rodopiam, linhas que esticam e encolhem num bailado ensaiado que ela própria coreografava.

Que bonito desenho. 

Ele, enfermeiro de corpos doentes e almas magoadas, respondeu ao teimoso silêncio instalado como se não tivesse percebido a sua presença peçonhenta. 

Porquê uma bailarina?

Na face dela, franziram-se olhos, pestanas, sobrancelhas, numa manifestação unânime de fúria perante a intrusão. Manteve-se, no entanto, em silêncio.

Danças?

A pergunta, percebida como ataque a soldado ferido, incendiou a sua fúria vulcânica e foi com ímpeto que as palavras irromperam, tortuosas e velozes, da gruta silenciosa que a boca fora por tanto tempo.

Se eu danço? Parece-lhe? Vejo que tem olhos e não sei para que os usa mas não será, certamente, para ver. Meta-se na sua vida e faça o seu trabalho.

A voz, por falta de uso, nasceu grave e rouca, dissonante da sua juventude e fragilidade. Ele, surpreso por um só segundo, nada disse. Colheu-a pela cintura, enlaçou-a e não mais a largou durante a música que só naquele quarto do hospital se fez ouvir. Rodopiaram para longe, para cenários quentes e alegres de bailarinos de voltas perfeitas. Ninguém sabe ao certo quanto tempo durou ou se, de facto, aconteceu mas, quando a bailarina voltou à cadeira de rodas, a alma ,ainda dançante, esqueceu que alguma vez havia lá estado.