segunda-feira, novembro 29, 2010

Fotografia

Conhecia-a assim. Sorridente, serena, tão pequena que cabia nas molduras de 15x10 espalhadas pela casa.

A Mãe.

Conhecia-lhe a história também. A avó repetia que trabalhava por um mundo melhor. Cantou-lho em canções de embalar, em canções de banho, em canções de pequeno-almoço de sopas de leite. Inventou histórias em que a Mãe era heroína e o mundo melhorava, de facto, quando lhe aconchegava os cobertores ou, antes ainda, quando as suas pálpebras pequenas cediam perante uma façanha tão grande.

Recebia postais esporádicos, que a avó lhe lia repetidamente, emocionada, mesmo quando ele já dormia. O conteúdo era carinhoso, aconchegante, mas aos seus ouvidos infantis soava sempre distante, voz sépia de fotografia a cores.

Quando cresceu o suficiente para frequentar a escola e percebeu que todas as outras crianças tinham a mãe no lugar onde ele guardava a avó, reservou-lhe um certo rancor. Não entendia que um mundo melhor pudesse ser aquele em que ele não tinha mãe.

Exigiu vê-la. Recusou-se a comer as sopas de leite pela manhã e fechou a boca a qualquer outra tentativa criativa da avó. A luta durou alguns dias até que a mulher, mais preocupada que esgotada, cedeu. Ouviu-a ao telefone. Pedia desculpa num lamento sussurrado. Não prestou atenção porque imaginava, com ansiedade, já sem fome, o colo da mãe, alta, corajosa, heroína de um mundo melhor.

Quando saíram de casa, o frio cortante da madrugada parecia entristecer mais os olhos tristes da avó, escondida sob o lenço branco que trazia à cabeça. Quando o carro parou, viu uma casa grande, guardada por muitos polícias, tal era a importância de quem ali trabalhava. Foram revistados, não fossem levar armas que magoassem quem constrói um mundo melhor. Não percebeu porque os fecharam numa divisão de grades de ferro, juntamente com outros visitantes, antes de os empurrarem para uma grande sala com mesas corridas. Uma sala

Triste

Suja

Cinzenta.

Quando viu a mulher da foto sentada numa mesa ao fundo, pequena, encolhida, de olhos tristes como os da avó, fechou os seus olhos com força e pediu baixinho sopas de leite.

quarta-feira, novembro 17, 2010

Cão

Ninguém percebia ao certo porque é que ele tinha escolhido aquele cão.

O animal, coxo, de pêlo baço e olhos permanentemente remelados, arrastava-se a si e aos seus muitos anos caninos nos curtos e dolorosos passeios nocturnos, cada vez mais dolorosos, cada vez mais curtos.

Ele próprio, ainda jovem, ainda sonhador de mundos perfeitos, não percebia porque é que, naquela bafienta manhã passada no canil, havia insistido em levar para casa o Cão, a despeito de todas as tentativas da responsável para o dissuadir. Era uma química irracional a que os unia (se é que as há racionais). Ele não percebia de velhice, o Cão já não recordava a juventude, e assim se acompanhavam, um pé e uma pata em cada mundo.

Numa manhã de Inverno, o porteiro encontrou-o na rua, à porta do prédio.

Nu. Gelado. Sem sentidos.

O homem levou o rapaz para casa, deitou-o, procurou cobertores que lhe cobrissem o tom azulado da tez, botijas de água quente que lhe devolvessem os pés ao chão.

O Cão, coxo, remeloso, arrastado, mas sobretudo velho, lançou-se sobre o corpo inerte e, naquela manhã bafienta, deixou-se ficar e devolveu-lhe todo o calor acumulado desde a saída do canil.

Quando despertou, outra vez quente, outra vez jovem, deixou de acreditar em mundos perfeitos. Era o Cão quem jazia inerte, agora, cumprido o mais humano dos desígnios.

domingo, novembro 07, 2010

Sem saída

Deitada, como sempre estava, sentiu o cheiro familiar da cebola a dourar no azeite. Ouvia a filha cantarolar uma qualquer melodia inventada enquanto o sol se punha, preguiçoso.

Quis voltar-se na cama, mas não a chamou. Doía-lhe aquela dependência esmagadora de amor-próprio, aquele lento desgaste de dignidade. O cantar aliterado era reconfortante. Fechava os olhos e era ela quem cantava, cozinhava e geria uma casa de sete. Era ela quem voltava os filhos na cama, quem supria as suas necessidades infantis.

Acordou da fantasia, velho traste imóvel, com o bater exacerbado da porta. Aquele bater de porta que dissolvia cheiros, sons e sabores. A cantoria parou e logo um silêncio atemorizado, nauseante.

Não tardou a ouvir o grito masculino, mote viril de um poder cobarde que se alimenta de vida e alegria. Não voltou a ouvir a voz límpida da filha até que o som de uma bofetada se impôs, eco repetido de um pesadelo real. Um pequeno grito, agora abafado, tímido, já não límpido, já não cantarolado.

Não gritou também ela, não chorou. Encolheu-se mais nos lençóis e rezou baixinho à morte, para que chegasse depressa.