terça-feira, julho 27, 2010

Sentido

Temos que ir comprar o aparelho. 

Dizia que sim, sempre que sim. Às vezes fingia mesmo não ouvir, afinal era essa a abstracta deficiência a que o dito aparelho vinha acudir. Olhava a mulher, ainda tão bonita, ainda tão cheia daquela magia das mulheres bonitas, sem que ela reparasse, perdida em mil e um procedimentos tão quotidianos quanto inúteis, em tempo disfarçado de pressa. Ele, ainda tão encantado, ainda tão cheio do enlevo dos homens encantados por uma mulher bonita.

Vamos comprar o aparelho.

Foi ele quem lhe disse desta vez. Não porque tivesse finalmente percebido a sua derradeira utilidade, não porque sentisse a falta da audição límpida como dantes, não porque estivesse cansado de ouvir a frase já erodida. Fizera-o pelo mesmo motivo que o movera nos últimos quarenta anos. Pela tranquilidade dela. Pelo amor a ela. Por ela.

Saíram da loja. Ela, feliz, bonita, ancorada ao seu braço, sorria como um navio que chega a bom porto. Ele, feliz também, bonito por estar com ela, desligou subtilmente o pequeno botão do aparelho. O que ouvia chegava perfeitamente. Ela era, na realidade, tudo aquilo de que os seus sentidos precisavam.

sexta-feira, julho 23, 2010

De fadas

O Sol já se deitava no oceano mas o calor ainda era peganhento, húmido, quase pantanoso. O peditório era voluntário, sim, mas era inevitável a cada um dos presentes, de latinha a tiracolo e autocolantes na mão, sentir aquele incómodo molhado de quem foi ininterruptamente lambido por um qualquer, ainda que amigável e bem-intencionado, ser canino.

Quando o miúdo passou, absorto no conteúdo monetário da própria mão, perdido em somas, divisões e provas-dos-nove, ela decidiu abordá-lo, divertida.

E tu, pequeno, não queres ajudar?

Levantou a cabeça mas não olhou de imediato para ela. Sacudiu a cabeça, piscou os olhos duas vezes, como quem deixa um processo complexo em suspenso, e procurou a fonte da voz. Ela voltou.

Vejo que tens umas moedas. Não queres ajudar os meninos mais pobres que tu?

Disse-o com a inocente vaidade de quem é mentora de uma lição de vida gratuita, de quem exerce uma boa acção que, num espírito tão jovem, parece sempre dar mais frutos ou, pelo menos, mais contentamento. Por isso a resposta da criança a exasperou tanto.

Estas moedas são para um gelado. Eu até as dava mas vem aí a Fada dos Dentes e ela também pode dar algumas a esses meninos.


Interrompeu o parêntesis e seguiu, como se nunca tivesse sido interrompido. Ela ainda murmurou um Egoísta! mas não conseguiu ignorar por mais tempo as gargalhadas dos colegas.

Uma mulher de cabelos brancos repuxados no alto da cabeça, coberta de tule azul e envolta numa bolha de brilho amarelo, entregava uma saquinha tilintante, igualmente azul.

Para os meninos mais pobres que o meu afilhado.

Ela nunca mais duvidou que há algo de mágico, de amplificador, de inigualavelmente real na imaginação de uma criança.

sexta-feira, julho 16, 2010

Pinturas

O cheiro a tinta era intenso mas já há anos que deixara de o incomodar. Todas as profissões têm um perfume e à sua pertencia aquele, por inerência, e ele aceitava-o como o do seu próprio corpo, que, na realidade, só é cheiro para os outros, porque o proprietário o não sente.

Pintava a casa desses mesmos outros com o orgulho de quem lhes muda a vida, de quem lhes dá um novo rumo, de quem lhes alarga horizontes e oportunidades. Um bebé está para chegar, ele pinta azul-bebé, rosa-bebé, amarelo-pintainho. A humidade invadiu a casa de banho, ele pinta branco-frescura. A sala vai mudar de ambiente, ele pinta castanho-conforto, verde-natureza.

Prepara os materiais, assobiando estes pensamentos, enquanto o casal deixa a casa.

Eu disse-te que tirasses o diário do quarto porque vinha o pintor.


Oh, o pobre coitado às tantas nem sabe ler. 

Quando regressam, mais tarde, o quarto anoiteceu em vez de amanhecer.

Mas o que é isto?! Eu escolhi amarelo-sol!

Se o pintor ainda ali estivesse, diria que ele próprio preferiu negro-ignorância.

segunda-feira, julho 12, 2010

Gota

Era assim, agora, no número 22 da Rua D. Nuno Álvares Pereira. Nas cordas, a roupa pairava sempre, fantasmagórico entretenimento de uma alma alheada.

Lençol, toalha, pano, meia, meia, novamente lençol.

A ordem variava: por cor, por tamanho, por modelo, por capricho, mas não faltava nunca roupa estendida. A máquina não tinha descanso, o tanque fazia-se assistente, lavava-se o sujo, o limpo, o assim-assim. Quando escasseava o vestuário por lavar, por abundância de estender, a mulher recorria a cortinas, tapetes, colchas, edredões, têxteis sabidamente pouco amantes de alvoroços lavadores.

Assim estava a mulher, agora, estendedora de roupa, alheada do irmão que passava por baixo, no carro negro, comprido, fúnebre, seguido de uma multidão de corvos tristes, lúgubres, encolhidos.

Os femininos olhos desgrenhados, se assim se pode falar de olhos, estiveram sempre na roupa, na corda, fixos como molas.

De um alvo soutien suspenso, uma gota caiu sobre o carro negro. Aquela peça de roupa libertara a mulher da oceânica lágrima que lhe afogava o peito.