domingo, fevereiro 27, 2011

Filha de pai incógnito. 

Doía-lhe aquela bruta impressão de um trauma pessoal na sua identidade. Não existiam designações de "traída pelo marido" nem mesmo um "companheiros múltiplos" e parecia-lhe de mau gosto que a sua orfandade fosse assim exposta como condição inerente.

Ao longo da infância sentiu-lhe a falta nos dias do Pai. Na adolescência, quando discutia autorizações e horários para incursões nocturnas. Desconhecia as didascálias de um papel paterno e sempre lhe pareceu que a personagem materna mantinha uma presença mítica no palco da sua vida. Agora, já adulta, não era a existência que cobiçava mas o nome. Só um nome que cobrisse de normalidade aquele rótulo de pessoa digna de dó. Com a morte da mãe, havia perecido também a hipótese de dar um nome ao macho cobridor a que o Registo Civil chamava pai.

A primeira vez que a pomba lhe bicou o vidro da cozinha, ignorou-a. Saiu, apressada, para trabalhar e não voltou a lembrar o assunto até, já noite, chegar a casa e sentir o barulho alarmante de uns minúsculos golpes pneumáticos. A pomba permanecia no mesmo sítio, no mesmo intento.

Afugentou-a, bateu os pés no chão, vozeou. O animal, firme no objectivo mas determinado na sobrevivência, voou. Na manhã seguinte, o mesmo local, a mesma pomba, as mesmas bicadas. Mas um papel.

Amarelado, pequeno, enrolado na perna da pomba. Decerto sempre ali tinha estado ainda que ela o não tivesse notado. Abriu a janela. O animal caminhou pela mesa, sobranceiro às asas e estacou, solene. Ela retirou o minúsculo papel e, desenrolando,

Uma morada. Um contacto. 
António, 
Teu pai

Afagou a pomba e empurrou-a pela janela. Voltou a enrolar o papel, que rapidamente destinou ao caixote do lixo. Sorriu e saiu. Feliz.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Empatia

Se à antipatia fosse dada a escolha da sua aparência, seriam aqueles os olhos, o cabelo, a expressão que escolheria. A impressão que ficava a quem a conhecia, não era a de que ela era antipática mas a de que era a própria antipatia.

Perante gracejos e afeições, a postura da criatura elevava uma massiva superfície anti-aderente, repulsiva. E esse incómodo atributo destacava-se ainda mais naquela família, dada a partilhas, a abraços e gargalhadas. Foi à festa menos por vontade de participar das comemorações do que para evitar que o namorado fosse sem ela. Não entendia que ele pertencesse àquele clã que agora via, onde a existência se desenrolava, intrometida, num enorme espaço público onde a privacidade não cabia.

À vulgaridade das questões que lhe dirigiram respondeu com um silêncio nauseado, desencorajador. No entanto, em vez de dissuadir as atenções, limitou-se a afastá-las. Num pequeno círculo, perto de si, comentava-se com amargura e um certo tom de indignação a escolha (pouco) amorosa do benjamim. Como num concílio tácito, decidiram votá-la à transparência.

O vaticínio teria sido outro se soubessem dos dois primeiros anos de existência incómoda para quem não a desejou e dos dez anos, casas, pais que lhes sucederam ou dos últimos quatro passados numa instituição onde nada nem ninguém era seu.

Ele era seu. Ele era a sua empatia.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Alturas

Tomás era grande demais para o amor. No mais literal dos sentidos.

A dissonante distribuição anatómica dos seus 205 centímetros tornavam-no uma opção pouco interessante para o género feminino, cujo soberbo coração não era de todo alheio às questões mais práticas de uma vida a dois.

Tomás invejava o companheirismo que observava na vida alheia sem, no entanto, sentir pena de si próprio. Encarava a cruzada sentimental como uma ambição e não como uma necessidade. Foi quando conheceu o humor vivo e a determinação dela que a ambição se tornou batalha e o condicional, imperativo.

Experimentou técnicas bárbaras para encolher e não houve substância química ou natural que o seu organismo não tivesse processado na vazia tentativa de deixar de a olhar da incontornável perspectiva altiva.

Não soube qual das mezinhas resultou ou qual das insuportáveis torturas se tornou justificável, mas, um dia, acordou mais pequeno. Não era uma diferença notória mas ele, conhecedor experimentado da geografia do seu corpo, percebeu-a.

Não tardou muito até que todos os que rodeavam Tomás notassem o seu inexplicável encolhimento. Também ela notou e essa consonância de tamanhos gerou uma agradável sensação de bem-estar no um que eles eram quando eram dois.

Tomás amou-a e amou-se até ao dia em que acordou, ao lado dela, e se notou mais pequeno.

A dissonância voltara e Tomás não voltou ao corpo dela, nem quando passou a caber na palma da sua mão.