sábado, novembro 25, 2006

Estrelas cadentes

Havia no céu uma estrela que esperava. Passavam os dias monótonos e as noites longas e, em silêncio, sabia o que esperava. Não sabia quantas noites teria de brilhar ainda, mas esperava como quem não espera, porque quem espera tem a ansiedade de deixar de esperar. E a estrela brilhava, serena, e às vezes esquecia que o momento podia chegar.
Um segundo só bastou para interromper a sua espera. Piscou três vezes como quem suspira, e lançou-se no infinito do cosmos, espalhando brilho por onde passava, como quem sorri.
Cá em baixo, a anos luz de distância, havia um céu estrelado a brilhar num olhar encantado. "Nunca tinha visto uma estrela cadente..."

terça-feira, julho 18, 2006

Pedra

O dia estava cor de nevoeiro e no ar mais não havia do que uma música de framboesa. No centro da praça uma estátua de pele, osso, sangue e coração. Estátua mais por hábito do que por vocação, tinha a textura da pedra e cheirava a tempo.

Sentado à sombra da estátua, todos os dias o louco da vila, solene na sua insanidade, babava e gritava a mesma história da mulher que, delirante de amor por um caixeiro-viajante, prometera a si mesma esperá-lo para um dia consumarem o nobre sentimento. O viajante, ignorante dos desvarios amorosos da mulher que só vira algumas vezes por inerência da profissão, nunca lhe havia falado dos sete filhos e da casa quente que também o esperavam no final de cada viagem.

O louco continuava a sua história, já de pé e lançando cada vez mais longe as gotas de saliva. A mulher, esperando sempre, tinha-se tornado estátua, menos por magia do que por comodidade, e estava ali, diante de todos, no centro da praça.

Tentando parecer mais respeitável, o louco compunha com dedicação os vários pedaços de pano que lhe cobriam o corpo antes de prosseguir a sua narrativa, agora com um ar mais ridículo do que antes. Em tom profético anunciou que no dia em que o viajante voltasse, a estátua ia desaparecer e só assim todos os habitantes da vila iam acreditar que ele não era louco.

Um dia amanheceu e a ladainha do louco já não era a mesma. Gritava, desesperado, que a estátua tinha desaparecido. Os poucos que lhe deram ouvidos deitaram um olhar rápido ao centro da praça e, vendo pedra no mesmo lugar, continuaram o seu caminho.

O louco da vila nunca deixou de ser louco, mas só os seus olhos viram que agora no centro da praça estavam sete estátuas pequeninas habituadas a esperar um pai que chegava sempre.

quarta-feira, junho 21, 2006

Limpezas

Quando a mãe lhe perguntou o que estava a fazer respondeu, ainda remexendo no estojo, com o ar mais distraído do mundo "Estou a pintar a minha alma". A mãe arqueou as sobrancelhas dos olhos esbugalhados num primeiro medo de demência infantil, mas depressa encolheu os ombros zombeteiros e continuou a aspirar o tapete.

O miúdo, inclinado sobre a mesa, de língua de fora e joelhos fincados na cadeira, travava a luta da sua vida com uma folha invisível. Fazia pressão para baixo, depois puxava para a direita, inclinava para a esquerda até que, num golpe de mestria, cravou os cotovelos, esfolados de outras lutas, na mesa e sossegou. Sem nunca tirar os cotovelos da superfície de madeira escura, tirou o lapis de cera mais pequenino da caixa. Pintou a folha invisível com grandes pinceladas de laranja-água e desenhou duas bolinhas paralelas e um sorriso logo abaixo a vermelho-carvão.

De repente, deixou-se escorregar da cadeira e com o ar mais cansado e aliviado que alguma vez se viu num miúdo, disse: "Já está. Agora que a vejo nunca mais a perco." E saiu.

A mãe, malabarista de canos de aspirador e panos do pó, num relance de inspectora de higiene e limpeza, gritou horrorizada ao ver a mesa pintada com lápis de cera. Borrifou um pano com líquido apaga-tudo e apagou a alma do miúdo.

quarta-feira, abril 12, 2006

Pretéritos

Não gosto de verbos conjugados. O tempo é prepotente e dissimulado, cobarde quando se esconde na própria conjugação. Faz qualquer acção vergar-se sob o seu peso, responder pela perfeição dos seus pretéritos. Amei? Não.
É no infinitivo que a acção se solta, que é livre de inícios e fins sufocantes. É o infinito a fazer caretas ao tempo. Amar? ...

terça-feira, fevereiro 28, 2006

Pedaços

Sempre pensei que o amor doía. Que nos fazia respirar unicamente o ar que flutua nos pulmões da outra pessoa, como se todo o ar restante fosse ofensivamente impuro. Que o tempo se alongava ou apressava ao ritmo dos batimentos de um sangue inexplicavelmente quente. Que minutos, horas, dias ou semanas de ausência pesam a mesma opressão sobre o peito. Pensei que alguma coisa invisível unia duas pessoas, um cordão suave que pairava sobre tudo e todos. Um canal por onde passavam pedacinhos pequeninos de dois cosmos em sintonia. Sempre pensei que era quando se rompia esse cordão que o amor doía. E é verdade.

Só pedacinhos de cosmos perdidos na imensidão do infinito.

Não gosto do amor.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Luxúria

Lençóis de seda vermelha amontoados no fim da cama, ainda quentes das carícias sôfregas. No chão o avesso da lingerie marca os passos apressados vindos da porta. Os perfumes copulam e adormecem, inebriantes e inebriados. O ar do quarto vazio pesa. Pesa como o silêncio de tudo o que ficou por dizer.