quarta-feira, outubro 20, 2010

Diferenças

O seu filho é diferente.

Um qualquer líquido frio, viscoso, transparente demorou-se no topo da sua cabeça para logo descer, insolente vulcão, até aos pés. Era uma tristeza dominadora, daquelas que subjuga e faz  todas as memórias felizes reféns de um assalto escuro e silencioso. Olhou o filho.

Sentado à pequena mesa colorida do hospital, era uma criança normal. Os lápis eram iguais aos das outras crianças, as cores as mesmas, os traços idênticos. E aquele médico

O seu filho é diferente.

Diferente seria a ausência de amigos na escola, o silêncio opressivo face a um cumprimento ou pergunta, a insistência inabalável em brincar com os dinossauros, sempre e só com os dinossauros, a reticência atemorizada em trocar o pijama azul, já curto para pernas e braços, já fino demais para aquecer, já não azul. 

O médico continuava a explicação, lançando palavras no abismo para onde as palavras caem quando ninguém as quer. A sua vontade era de trocar de papéis com o filho, deixar que ele assumisse os seus sapatos 40, as suas responsabilidades de crescido, deixar que ele lhe dissesse, ao seu eu criança, que tudo vai correr bem, que este médico é um pesadelo e que não tarda vamos acordar confortáveis e protegidos dentro do pijama azul.

Diferente pode ser bom, não é, filho?

Foi a única frase, oca, vazia, inútil, que o seu cérebro lhe enviou, também ele oco, vazio e inútil por aqueles momentos.

Ignorando a interpelação do médico, como havia feito com todas as anteriores, anulando-o do quadro hospitalar, a criança levantou-se e, oferecendo a pequena mão à mão inerte do pai

Diferente é diferente. Só.

domingo, outubro 10, 2010

Insónia

Quando entrou na sala de jantar não notou os três funcionários que, no balcão, cochichavam sobre os estranhos hábitos daquele hóspede que não dormia.

Pediu a refeição, que deglutiu sozinho, sem prazer, demoradamente, ignorando a deixa da criada do hotel no outro extremo da sala.

Há meses que é assim. Quando chego ao quarto, a cama está sempre feita, como no primeiro dia. Tenho a certeza que o homem não dorme. 

Talvez isso seja costume na Europa. 

A ignorância do comentário do jovem bagageiro, embora com ligeireza, não tardou a ser punida pelo gerente do hotel com uma palmada na nuca, palmada de muito génio ou prática, tendo em conta a força da referida e a ausência de ruído.

Não sejas estúpido. Todos os seres humanos precisam de dormir, seja aqui ou em qualquer outra parte do mundo.

A declaração foi sentenciosa e mais ninguém se pronunciou relativamente ao tema, não por convencimento mas por respeito ao poder silenciador da autoridade patronal. Mas foi o próprio gerente que, com mais atenção ao hóspede do que a que é devida ao zelo do cargo, rompeu o frágil silêncio nómada.

E o homem continua a pedir os dois cafés!

Assim era. Pediu, como todos os dias, ao almoço e ao jantar, dois cafés. Aquele era, na realidade, o único tomo da refeição de que desfrutava. Sorvia o líquido quente longamente, saboreando a fluidez, a suavidade, a sagacidade do percurso traçado dentro de si e, quando terminava, havia sempre um segundo café esperando-o, como uma lembrança revivida do primeiro.

Será do café que não dorme. Ou do calor da ilha. Não deve estar habituado.

Assim se retirou o gerente, determinando o seu próprio final para uma história que o intrigava mas não incomodava.

Notando a liberdade dessa ausência, o rapaz, num ímpeto mais devido ao seu carácter do que à sua idade, e opondo-se à fraca resistência curiosa da colega, aproximou-se da mesa e fez a pergunta que nunca tinha sido feita.

O homem respirou fundo como quem se livra de um peso que não é de bagagens de hotel e contou, sem interrupções, a noite em que pousou a cabeça no volante do seu carro e fechou os olhos à rapariga que se atravessava à sua frente.