O seu filho é diferente.
Um qualquer líquido frio, viscoso, transparente demorou-se no topo da sua cabeça para logo descer, insolente vulcão, até aos pés. Era uma tristeza dominadora, daquelas que subjuga e faz todas as memórias felizes reféns de um assalto escuro e silencioso. Olhou o filho.
Sentado à pequena mesa colorida do hospital, era uma criança normal. Os lápis eram iguais aos das outras crianças, as cores as mesmas, os traços idênticos. E aquele médico
O seu filho é diferente.
Diferente seria a ausência de amigos na escola, o silêncio opressivo face a um cumprimento ou pergunta, a insistência inabalável em brincar com os dinossauros, sempre e só com os dinossauros, a reticência atemorizada em trocar o pijama azul, já curto para pernas e braços, já fino demais para aquecer, já não azul.
O médico continuava a explicação, lançando palavras no abismo para onde as palavras caem quando ninguém as quer. A sua vontade era de trocar de papéis com o filho, deixar que ele assumisse os seus sapatos 40, as suas responsabilidades de crescido, deixar que ele lhe dissesse, ao seu eu criança, que tudo vai correr bem, que este médico é um pesadelo e que não tarda vamos acordar confortáveis e protegidos dentro do pijama azul.
Diferente pode ser bom, não é, filho?
Foi a única frase, oca, vazia, inútil, que o seu cérebro lhe enviou, também ele oco, vazio e inútil por aqueles momentos.
Ignorando a interpelação do médico, como havia feito com todas as anteriores, anulando-o do quadro hospitalar, a criança levantou-se e, oferecendo a pequena mão à mão inerte do pai
Diferente é diferente. Só.
"não me perguntes quem sou. não me perguntes nada. eu não sei responder a todas as perguntas do mundo. pousa os lábios sobre a página. devagar,muito devagar. vamos beijar-nos."
quarta-feira, outubro 20, 2010
Diferenças
domingo, outubro 10, 2010
Insónia
Quando entrou na sala de jantar não notou os três funcionários que, no balcão, cochichavam sobre os estranhos hábitos daquele hóspede que não dormia.
Pediu a refeição, que deglutiu sozinho, sem prazer, demoradamente, ignorando a deixa da criada do hotel no outro extremo da sala.
Há meses que é assim. Quando chego ao quarto, a cama está sempre feita, como no primeiro dia. Tenho a certeza que o homem não dorme.
Talvez isso seja costume na Europa.
A ignorância do comentário do jovem bagageiro, embora com ligeireza, não tardou a ser punida pelo gerente do hotel com uma palmada na nuca, palmada de muito génio ou prática, tendo em conta a força da referida e a ausência de ruído.
Não sejas estúpido. Todos os seres humanos precisam de dormir, seja aqui ou em qualquer outra parte do mundo.
A declaração foi sentenciosa e mais ninguém se pronunciou relativamente ao tema, não por convencimento mas por respeito ao poder silenciador da autoridade patronal. Mas foi o próprio gerente que, com mais atenção ao hóspede do que a que é devida ao zelo do cargo, rompeu o frágil silêncio nómada.
E o homem continua a pedir os dois cafés!
Assim era. Pediu, como todos os dias, ao almoço e ao jantar, dois cafés. Aquele era, na realidade, o único tomo da refeição de que desfrutava. Sorvia o líquido quente longamente, saboreando a fluidez, a suavidade, a sagacidade do percurso traçado dentro de si e, quando terminava, havia sempre um segundo café esperando-o, como uma lembrança revivida do primeiro.
Será do café que não dorme. Ou do calor da ilha. Não deve estar habituado.
Assim se retirou o gerente, determinando o seu próprio final para uma história que o intrigava mas não incomodava.
Notando a liberdade dessa ausência, o rapaz, num ímpeto mais devido ao seu carácter do que à sua idade, e opondo-se à fraca resistência curiosa da colega, aproximou-se da mesa e fez a pergunta que nunca tinha sido feita.
O homem respirou fundo como quem se livra de um peso que não é de bagagens de hotel e contou, sem interrupções, a noite em que pousou a cabeça no volante do seu carro e fechou os olhos à rapariga que se atravessava à sua frente.