"não me perguntes quem sou. não me perguntes nada. eu não sei responder a todas as perguntas do mundo. pousa os lábios sobre a página. devagar,muito devagar. vamos beijar-nos."
segunda-feira, outubro 17, 2011
Boa noite
segunda-feira, setembro 19, 2011
Interior
segunda-feira, setembro 05, 2011
Rainha
quarta-feira, agosto 10, 2011
Só
Depois de uma noite que existiu por
dias
meses
anos,
abriu as cortinas e a luz entrou
na sala
na mente
na alma
Amontoou na mochila
roupas
forças
vontade
e saiu. Não sabia onde ela estava. Mas acreditava. Encontraria
O dia
O lugar
O sentido
onde paira o fim da órbita escrita pela história dos dois para, de regresso ao começo, serem
ele
ela.
Só.
terça-feira, agosto 02, 2011
Uniões
segunda-feira, maio 09, 2011
Marés
Houvesse mais mar dentro dele e mais profundamente ela mergulharia. De tão abandonado mergulho, afundou-se na sua alma azul e, ondulada, fez-se mar.
terça-feira, abril 26, 2011
Noite
A lua ia alta e o homem jorrava impropérios desvairados e cambaleantes. Desvairada e cambaleante ia também a embriaguez terminal que levava na alma.
No percurso incerto que um pé traçava sem acordo do outro, viajava um inusitado propósito de atingir nas entranhas todos aqueles cujo imediato diagnóstico não fosse uma definida infelicidade. A cadela, sempre dois passos atrás, permanecia mulher cautelosa e envergonhada, entre o cuidar e o fugir.
O abalo do qual o homem era epicentro alargava-se na proporção dos decibéis e a força destrutiva era tão determinada que, em breve, não restava ninguém no passeio. Sentiu o arrepio quente da frustração e, fazendo-se onda sem praia, elevou uma tábua extraviada e assentou-a nas costas da cadela.
O lamento dela mal se ouviu. Foi o ganido dele que ecoou toda a noite pelas ruas da cidade civilizada.
domingo, março 27, 2011
Tributo
domingo, fevereiro 27, 2011
Dó
Filha de pai incógnito.
Doía-lhe aquela bruta impressão de um trauma pessoal na sua identidade. Não existiam designações de "traída pelo marido" nem mesmo um "companheiros múltiplos" e parecia-lhe de mau gosto que a sua orfandade fosse assim exposta como condição inerente.
Ao longo da infância sentiu-lhe a falta nos dias do Pai. Na adolescência, quando discutia autorizações e horários para incursões nocturnas. Desconhecia as didascálias de um papel paterno e sempre lhe pareceu que a personagem materna mantinha uma presença mítica no palco da sua vida. Agora, já adulta, não era a existência que cobiçava mas o nome. Só um nome que cobrisse de normalidade aquele rótulo de pessoa digna de dó. Com a morte da mãe, havia perecido também a hipótese de dar um nome ao macho cobridor a que o Registo Civil chamava pai.
A primeira vez que a pomba lhe bicou o vidro da cozinha, ignorou-a. Saiu, apressada, para trabalhar e não voltou a lembrar o assunto até, já noite, chegar a casa e sentir o barulho alarmante de uns minúsculos golpes pneumáticos. A pomba permanecia no mesmo sítio, no mesmo intento.
Afugentou-a, bateu os pés no chão, vozeou. O animal, firme no objectivo mas determinado na sobrevivência, voou. Na manhã seguinte, o mesmo local, a mesma pomba, as mesmas bicadas. Mas um papel.
Amarelado, pequeno, enrolado na perna da pomba. Decerto sempre ali tinha estado ainda que ela o não tivesse notado. Abriu a janela. O animal caminhou pela mesa, sobranceiro às asas e estacou, solene. Ela retirou o minúsculo papel e, desenrolando,
Uma morada. Um contacto.
António,
Teu pai
Afagou a pomba e empurrou-a pela janela. Voltou a enrolar o papel, que rapidamente destinou ao caixote do lixo. Sorriu e saiu. Feliz.
quarta-feira, fevereiro 23, 2011
Empatia
segunda-feira, fevereiro 21, 2011
Alturas
Tomás era grande demais para o amor. No mais literal dos sentidos.
A dissonante distribuição anatómica dos seus 205 centímetros tornavam-no uma opção pouco interessante para o género feminino, cujo soberbo coração não era de todo alheio às questões mais práticas de uma vida a dois.
Tomás invejava o companheirismo que observava na vida alheia sem, no entanto, sentir pena de si próprio. Encarava a cruzada sentimental como uma ambição e não como uma necessidade. Foi quando conheceu o humor vivo e a determinação dela que a ambição se tornou batalha e o condicional, imperativo.
Experimentou técnicas bárbaras para encolher e não houve substância química ou natural que o seu organismo não tivesse processado na vazia tentativa de deixar de a olhar da incontornável perspectiva altiva.
Não soube qual das mezinhas resultou ou qual das insuportáveis torturas se tornou justificável, mas, um dia, acordou mais pequeno. Não era uma diferença notória mas ele, conhecedor experimentado da geografia do seu corpo, percebeu-a.
Não tardou muito até que todos os que rodeavam Tomás notassem o seu inexplicável encolhimento. Também ela notou e essa consonância de tamanhos gerou uma agradável sensação de bem-estar no um que eles eram quando eram dois.
Tomás amou-a e amou-se até ao dia em que acordou, ao lado dela, e se notou mais pequeno.
A dissonância voltara e Tomás não voltou ao corpo dela, nem quando passou a caber na palma da sua mão.
domingo, janeiro 30, 2011
Visão
domingo, janeiro 23, 2011
Revolto
Não sabe como ficou assim. Já nem sabe quando. O mal-estar chegou levemente e deu lugar a uma irritação espontânea, que a pouco e pouco se foi ancorando como navio cansado de viagens. A alegria alheia causava-lhe uma impaciência que abeirava a cólera e as gargalhadas, os sorrisos, os abraços eram, para ele, um repugnante espectáculo de humanidade.
Reconhecia-lhes, aos outros, as expressões. Num qualquer tempo passado, como noutra vida, recordava-lhes o efeito na sua própria face, o calor ruborizado, a tensão ascendente dos lábios arqueados, o impulso ancestral do contacto físico. Perdeu-os.
Não sabe como. Já nem sabe quando.
No autocarro, como todos os dias, ergueu um silêncio imponente em sua volta, vítima de uma quarentena auto-prescrita. Olhou o chão enquanto murmurava pensamentos soltos, tentativa inútil de evitar que a felicidade dos outros lhe penetrasse o sistema nervoso.
No banco da frente, uma criança ria. Puxava os cabelos da mãe e ria desalmadamente.
Ele irritava-se.
Irritava-se a mãe.
A criança puxava e ria, ria, ria.
No banco da frente, a mãe eleva a mão aberta, remo pronto a abater-se sobre as águas agitadas da criança, e ele, firme, agarra-lhe o pulso com uma veemência tal que a mulher temeu nunca mais recuperar a vida do membro cativo.
Não sabe como. Mas sabe quando e porquê.