"não me perguntes quem sou. não me perguntes nada. eu não sei responder a todas as perguntas do mundo. pousa os lábios sobre a página. devagar,muito devagar. vamos beijar-nos."
sábado, novembro 25, 2006
Estrelas cadentes
terça-feira, julho 18, 2006
Pedra
Sentado à sombra da estátua, todos os dias o louco da vila, solene na sua insanidade, babava e gritava a mesma história da mulher que, delirante de amor por um caixeiro-viajante, prometera a si mesma esperá-lo para um dia consumarem o nobre sentimento. O viajante, ignorante dos desvarios amorosos da mulher que só vira algumas vezes por inerência da profissão, nunca lhe havia falado dos sete filhos e da casa quente que também o esperavam no final de cada viagem.
O louco continuava a sua história, já de pé e lançando cada vez mais longe as gotas de saliva. A mulher, esperando sempre, tinha-se tornado estátua, menos por magia do que por comodidade, e estava ali, diante de todos, no centro da praça.
Tentando parecer mais respeitável, o louco compunha com dedicação os vários pedaços de pano que lhe cobriam o corpo antes de prosseguir a sua narrativa, agora com um ar mais ridículo do que antes. Em tom profético anunciou que no dia em que o viajante voltasse, a estátua ia desaparecer e só assim todos os habitantes da vila iam acreditar que ele não era louco.
Um dia amanheceu e a ladainha do louco já não era a mesma. Gritava, desesperado, que a estátua tinha desaparecido. Os poucos que lhe deram ouvidos deitaram um olhar rápido ao centro da praça e, vendo pedra no mesmo lugar, continuaram o seu caminho.
O louco da vila nunca deixou de ser louco, mas só os seus olhos viram que agora no centro da praça estavam sete estátuas pequeninas habituadas a esperar um pai que chegava sempre.
quarta-feira, junho 21, 2006
Limpezas
O miúdo, inclinado sobre a mesa, de língua de fora e joelhos fincados na cadeira, travava a luta da sua vida com uma folha invisível. Fazia pressão para baixo, depois puxava para a direita, inclinava para a esquerda até que, num golpe de mestria, cravou os cotovelos, esfolados de outras lutas, na mesa e sossegou. Sem nunca tirar os cotovelos da superfície de madeira escura, tirou o lapis de cera mais pequenino da caixa. Pintou a folha invisível com grandes pinceladas de laranja-água e desenhou duas bolinhas paralelas e um sorriso logo abaixo a vermelho-carvão.
De repente, deixou-se escorregar da cadeira e com o ar mais cansado e aliviado que alguma vez se viu num miúdo, disse: "Já está. Agora que a vejo nunca mais a perco." E saiu.
A mãe, malabarista de canos de aspirador e panos do pó, num relance de inspectora de higiene e limpeza, gritou horrorizada ao ver a mesa pintada com lápis de cera. Borrifou um pano com líquido apaga-tudo e apagou a alma do miúdo.
quarta-feira, abril 12, 2006
Pretéritos
terça-feira, fevereiro 28, 2006
Pedaços
Sempre pensei que o amor doía. Que nos fazia respirar unicamente o ar que flutua nos pulmões da outra pessoa, como se todo o ar restante fosse ofensivamente impuro. Que o tempo se alongava ou apressava ao ritmo dos batimentos de um sangue inexplicavelmente quente. Que minutos, horas, dias ou semanas de ausência pesam a mesma opressão sobre o peito. Pensei que alguma coisa invisível unia duas pessoas, um cordão suave que pairava sobre tudo e todos. Um canal por onde passavam pedacinhos pequeninos de dois cosmos em sintonia. Sempre pensei que era quando se rompia esse cordão que o amor doía. E é verdade.
Só pedacinhos de cosmos perdidos na imensidão do infinito.
Não gosto do amor.