As roupas eram as de trabalho. Deixara as calças de ganga, as sapatilhas e a larga t-shirt bege no lúgubre quarto da pensão. Ainda se estranhava dentro dos sapatos de tacão gasto, da micro-saia, do decote vulgar que eram o marketing do produto que ela era. A lingerie era vermelho-luto, vermelho-luxúria, vermelho-colo, variável do daltonismo dos olhos que a viam.
Ainda o Sol não a vira por cinco minutos (ou uma hora, ou um dia, não sabe dizer) e já subia as velhas escadas de madeira da pensão. Acompanhada.
O rapaz da recepção baixa a cabeça, baixa o tom, baixa os olhos tristes, baixa a pena que tem dela. Como sempre, finge não a ver. Ela agradece, em silêncio, envergonhada dessa vergonha que só aparece ali, na recepção da pensão, no rapaz dos olhos tristes.
Lá em cima, no quarto, veste-se de nudez e é o papel do amor que representa com perfeição. Os gemidos têm tempos coordenados, o alinhamento contorcionista tem jeitos de didascália, as posições sucedem-se como no ensaio geral. No final, extenuada, sente-se mais actriz que prostituta. Faltam-lhe os justos aplausos mas, quando a nota desce sobre a mesa-de-cabeceira, encolhe os ombros e esquece as luzes do palco. Esquece o elenco, esquece o guião, esquece o desempenho. (Só) Assim sobrevive.
Desce os degraus rangentes do esquecimento e, na recepção, pela primeira vez em muito tempo, pára e olha o rapaz. Como pressentindo os olhos dela, ele ergue a cabeça, ergue o tom, ergue os olhos tristes. Ela segura-lhe a mão com o coração descontrolado. O sangue acorre, desenfreado, para aquele ponto quente em que a pele dele e dela se tocam. Não há explicação. Nem dele, o rapaz da recepção, dos olhos tristes. Nem dela, a prostituta, a actriz. Mas acontece.
É ela quem o guia até ao quarto mas, depois disso, não há comandos, não há líderes, não há papéis. Os olhos dele perdem a tristeza e ele olha-a como pela primeira vez, despida de roupas e defesas. As mãos dele perdem a timidez e toca-lhe o corpo abandonado pela primeira vez. Ama-a, também pela primeira vez. Ela, assim amada, é outra. Não a prostituta, não a actriz, não a rapariga das calças de ganga, das sapatilhas, da t-shirt bege. Ela é, tanto quanto se pode ser, pela primeira vez.
Não sabe ao certo quando deixou de ser mas presume que foi quando ele lhe pousou a nota na mesa-de-cabeceira.
Ele, o rapaz dos olhos tristes outra vez.
"não me perguntes quem sou. não me perguntes nada. eu não sei responder a todas as perguntas do mundo. pousa os lábios sobre a página. devagar,muito devagar. vamos beijar-nos."
segunda-feira, junho 21, 2010
Outra vez
quarta-feira, junho 09, 2010
Tique-taques
Acariciava o ventre com jeitos de mãe-natureza e, pensativa, séria, sentia com a imaginação toda a formação de um ser humano
ali mesmo
dentro de si.
Nos ouvidos, na cabeça, no corpo todo era aquele
tique-taque, tique-taque, tique-taque.
O tempo levava-lhe a melhor naquela corrida sem meta à vista mas não duvidava nunca que ia acontecer. Era como se a criança estivesse desde sempre
ali mesmo
dentro de si
só à espera de ser.
Quando o milésimo pauzinho se enrubesceu pela primeira vez de cor-de-rosa, contou-lhe com toda a naturalidade do mundo.
Está aqui mesmo, dentro de mim.
No dia seguinte, no lugar dele estavam o guarda-roupa vazio, o perfume e o bilhete
Não pode ser. É demais para mim agora.
Ela ouvia o tique-taque do relógio biológico. Ele ouvia um tique-taque de explosão.
Para ele não podia ser. Para ela sempre fora.