quarta-feira, novembro 17, 2010

Cão

Ninguém percebia ao certo porque é que ele tinha escolhido aquele cão.

O animal, coxo, de pêlo baço e olhos permanentemente remelados, arrastava-se a si e aos seus muitos anos caninos nos curtos e dolorosos passeios nocturnos, cada vez mais dolorosos, cada vez mais curtos.

Ele próprio, ainda jovem, ainda sonhador de mundos perfeitos, não percebia porque é que, naquela bafienta manhã passada no canil, havia insistido em levar para casa o Cão, a despeito de todas as tentativas da responsável para o dissuadir. Era uma química irracional a que os unia (se é que as há racionais). Ele não percebia de velhice, o Cão já não recordava a juventude, e assim se acompanhavam, um pé e uma pata em cada mundo.

Numa manhã de Inverno, o porteiro encontrou-o na rua, à porta do prédio.

Nu. Gelado. Sem sentidos.

O homem levou o rapaz para casa, deitou-o, procurou cobertores que lhe cobrissem o tom azulado da tez, botijas de água quente que lhe devolvessem os pés ao chão.

O Cão, coxo, remeloso, arrastado, mas sobretudo velho, lançou-se sobre o corpo inerte e, naquela manhã bafienta, deixou-se ficar e devolveu-lhe todo o calor acumulado desde a saída do canil.

Quando despertou, outra vez quente, outra vez jovem, deixou de acreditar em mundos perfeitos. Era o Cão quem jazia inerte, agora, cumprido o mais humano dos desígnios.

1 comentário:

sara* disse...

"...cumprido o mais humano dos desígnios." é a forma mais bonita que já li para descrever a morte. Como se eu algum dia pensasse que a morte podia ser bonita.
Parabéns, escreves cada vez melhor *