quarta-feira, dezembro 29, 2010

Bailarina

A culpa é um líquido viscoso que se cola ao interior do corpo e se deixa ficar, parasita intocável de alegria e dignidade.

A caneta interrompeu-se no papel para logo recomeçar, mais abaixo, dançante de traços curvilíneos que descem e sobem e rodopiam, linhas que esticam e encolhem num bailado ensaiado que ela própria coreografava.

Que bonito desenho. 

Ele, enfermeiro de corpos doentes e almas magoadas, respondeu ao teimoso silêncio instalado como se não tivesse percebido a sua presença peçonhenta. 

Porquê uma bailarina?

Na face dela, franziram-se olhos, pestanas, sobrancelhas, numa manifestação unânime de fúria perante a intrusão. Manteve-se, no entanto, em silêncio.

Danças?

A pergunta, percebida como ataque a soldado ferido, incendiou a sua fúria vulcânica e foi com ímpeto que as palavras irromperam, tortuosas e velozes, da gruta silenciosa que a boca fora por tanto tempo.

Se eu danço? Parece-lhe? Vejo que tem olhos e não sei para que os usa mas não será, certamente, para ver. Meta-se na sua vida e faça o seu trabalho.

A voz, por falta de uso, nasceu grave e rouca, dissonante da sua juventude e fragilidade. Ele, surpreso por um só segundo, nada disse. Colheu-a pela cintura, enlaçou-a e não mais a largou durante a música que só naquele quarto do hospital se fez ouvir. Rodopiaram para longe, para cenários quentes e alegres de bailarinos de voltas perfeitas. Ninguém sabe ao certo quanto tempo durou ou se, de facto, aconteceu mas, quando a bailarina voltou à cadeira de rodas, a alma ,ainda dançante, esqueceu que alguma vez havia lá estado.

1 comentário:

Mónica disse...

Tan bueno como siempre .Me alegro de haberte mandado ese mail .Por fin despertaste de tu profundo sueño .Espero el segundo de esta semana .Te quiero . Sigue así de despierta .