terça-feira, fevereiro 23, 2010

IV - De cor

Verdes...

Um passo.

Verdes...

Outro passo.

Verdes. Verdes. Verdes.

Uma corrida apressada para atrasar o tique-taque do relógio autoritário que interrompe a ladainha mental.

Só quer que sejam verdes. Os olhos. Dela. Claros, escuros, translúcidos ou profundos, não importa. Mas verdes, sim. Porque os imaginou assim. Porque já os viu de todas as vezes em que sonhou com ela. Que seja ela.

Verdes...

Na praça inundada de sol procura por entre as mesas, como combinaram. Como lhe disseram que ia ser. Ela sorri muito e ele sabe que é ela. Porque sorri com os olhos

verdes.

A conversa flui como boa música, que nunca acaba porque ninguém tem coragem de lhe impor um fim. Descontraída, natural, como se sempre tivesse sido assim: ele e ela e a conversa que é como boa música.

Ele abandonava-se mais e mais à cadeira quando da boca dela (não dos olhos) sai aquela frase mais escura. O mesmo sorriso, o dos olhos, verdes, mas aquela frase escura, como sombra.

Endireitou-se no assento como quem franze o sobrolho. Atento. E, a pouco e pouco, o discurso manchado de sombras, pontos negros. Abismos entre os dois.

Foi quando olhou novamente no fundo dos olhos dela que percebeu. Eram castanhos. Como sempre haviam sido. Foram verdes por vontade dos seus ao longo dos anos que durou aquela conversa.

No café pediu um chupa-chupa amarelo que suavizasse o amargo incolor que sentia na boca.

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

III - Música

Ele entrou e sentiu o silêncio que ela pôs em tudo. Um silêncio doce, alaranjado.

A noite, assim, tão ternamente chamada, encheu o quarto que só o sorriso dela iluminava. Ele, ainda encantado, acreditava que não existiam mais sorrisos. Enlaçou-a. A ela. Ao sorriso dela. À luz que ela era. E dormiu.

Assim, abraçados, abandonados ao sono, amaram-se em notas e ritmos sincopados, tempos e contratempos de um compasso cheio.

Corpo

Mente

Alma

em afinações imperfeitas, improvisos num solo a dois.

Assim, sem ambição, sem pretensão, só com enlevo, se fez a mais sublime das músicas. A que nunca se ouviu.

E dessa vez, como de outras, mas ainda assim luminosamente diferente, foi ele quem deixou um brinco-pedaço-de-alma.

Nunca mais a viu. Dissolveu-se. Como um sonho. Como se nunca tivesse sido real.

Até àquele dia, tão frio, tão distante, em que ela lhe trouxe o autógrafo.

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

II - Ainda Inverno

Saiu de casa de manhã. Como todos os dias. Depois do banho demorado. Como todos os dias. Depois de se vestir com precisão de ritual. Como todos os dias. Depois de engolir o café apressado. Como todos os dias. E naquele dia, ela.

Ali.

Sentada na escada fria, os cabelos num desalinho de vendaval, o casaco comprido encostado ao corpo com a pressão de um abraço, o olhar cansado perdido algures entre sonho e realidade.

Ela.

Ergueu os olhos para ele e brilhou. Sorridente. Feliz. Expectante. Toda Luz. Levantou-se com a graciosidade de quem vai levantar voo, encheu a boca suave e "Olá". Um "Olá" morno, aconchegante, um "Olá" que soava a "Para Sempre".
Do bolso tirou um pequeno papel cuidadosamente dobrado em mil. Como um nascer-do-Sol, ficava mais e mais luminosa a cada centímetro que a sua mão se aproximava da dele.
Ele, ainda frio de surpresa, ainda manhã de silêncio, colheu o papel, desdobrou-se nele mil vezes e viu nas letras já esbatidas o nome que trazia gravado na memória, a grafia de uma mão inalcançável que admirava tanto, tanto, tanto. Uma mão do outro lado de um mundo que ele havia feito seu.

"Foi ele mesmo que assinou." A voz ainda morna, ainda doce.

"Obrigado. Muito obrigado". E foi só. Pousou-lhe um beijo rápido na bochecha e seguiu. Ele, ainda Inverno por dentro, não estava pronto para a Primavera que ela era.

Ali.

Quando a neve começou a cair, um reflexo mostrou as duas lágrimas que ela trazia penduradas nas orelhas.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

I - Último sentido

Virou-se na cama e estendeu o braço moreno para chegar à caixa. A tampa de madeira escura, lisa, envelhecida pelo sol e pela lua, cansada de ser tampa, de abrir e fechar, sem outra utilidade que não a de revelar e esconder, fez ranger os gonzos e revelou a amálgama do conteúdo.

Brincos.

Brincos.

Brincos.

De cores, formas, tamanhos vários. De mulher, todos.

A princípio era acaso. Elas partiam e esqueciam-nos nos lençóis ainda quentes, no coração ainda suspirante, na vida ainda em desordem. Ele guardava-os, mais por distracção do que por dedicação. Assim abandonados, acumulados, foram conquistando paixão de coleccionador. Esquecera já os nomes, às vezes até os rostos de quem outrora os usara. Catalogava-os por aromas, sabores, sons de suspiro e gargalhada, palavras, silêncios, ondas assoberbadas de calor e frio. Amor(es).

Não os guardava por capricho nem por vaidade. Guardava-os para o caso de algum dia querer recolher todos os pequenos pedaços de alma que foi esquecendo na história de cada brinco.