sexta-feira, março 19, 2010

Berlindes

Os passos da tia a entrar no quarto interromperam o diálogo entre o seu camionista-de-caixa-de-fósforos e o polícia-colher-de-pau. Sentado no chão, de pernas cruzadas, qual pequeno buda, analisou-lhe a expressão. Escura. Pesada. Feia. Como se tivessem desaparecido todos os berlindes do mundo.

Nunca mais vais ver a tua mãe.

Deu-lhe vontade de rir aquela tia louca que via demasiada televisão. A mãe não desaparece como os desenhos animados. Ele toca-lhe, ela abraça-o. Está sempre ali, a um ou dois passos. No máximo uns dez, quando ele vai brincar com o Miguel para o parque.

Ao ver o sorriso trocista que o miúdo esboça, a mulher exaspera-se, agarra-o pelos braços.

Nunca mais vais ver a tua mãe, percebes Pedrinho? Nunca mais.

E cai-lhe no colo pequeno, num choro compulsivo, sufocada por soluços guturais. Ele faz-lhe festas nos cabelos desalinhados, pacientemente. Pensa que às vezes também ele choraminga porque perdeu o Rufus. Mas depois a mãe encontra-o, ainda cão, ainda de peluche. E ele deixa de chorar. Assim que a mãe entrar no quarto a tia vai perceber que está a portar-se como um bebé.

Alguém entra. Mas não é a mãe. É o tio.

Está toda a gente na sala.

A tia levanta-se. Sacode as lágrimas como se sacode a chuva. O menino olha a camisola encharcada com algum aborrecimento mas encolhe os ombros. Os tios encaminham-se para a sala. Ele volta para trás, à procura do Rufus. A mãe não vai querer procurá-lo depois da chatice que vai ser explicar à tia que nunca desapareceu.

Na sala estão todos como a tia. De preto. Com aquela expressão. Escura. Pesada. Feia. O miúdo diz:

Vem aí a minha mãe.

E as mulheres rebentam num choro como o da tia. Os homens escondem os olhos com as mãos.

Vem mesmo. Ainda agora a vi a subir as escadas.

O tom já é mais alto. Mais zangado. A mãe não ia gostar mas ele também não gosta que não acreditem nele. Ninguém desvia o olhar, ninguém muda de posição. Não fosse o soluçar e pareciam estátuas.

Quando a mãe entrou na sala e mais ninguém a viu, decidiu que tinha que mudar de família.

4 comentários:

C. disse...

Para mim, o teu melhor texto*

Unknown disse...

Sublime...

Jessica disse...

Tão grande que inunda.

"decidiu que tinha que mudar de família."

Bruno Gomes disse...

Descobri hoje o teu blog, e tas-me a custar uma tarde de trabalho. Não consigo parar de ler :s