terça-feira, julho 27, 2010

Sentido

Temos que ir comprar o aparelho. 

Dizia que sim, sempre que sim. Às vezes fingia mesmo não ouvir, afinal era essa a abstracta deficiência a que o dito aparelho vinha acudir. Olhava a mulher, ainda tão bonita, ainda tão cheia daquela magia das mulheres bonitas, sem que ela reparasse, perdida em mil e um procedimentos tão quotidianos quanto inúteis, em tempo disfarçado de pressa. Ele, ainda tão encantado, ainda tão cheio do enlevo dos homens encantados por uma mulher bonita.

Vamos comprar o aparelho.

Foi ele quem lhe disse desta vez. Não porque tivesse finalmente percebido a sua derradeira utilidade, não porque sentisse a falta da audição límpida como dantes, não porque estivesse cansado de ouvir a frase já erodida. Fizera-o pelo mesmo motivo que o movera nos últimos quarenta anos. Pela tranquilidade dela. Pelo amor a ela. Por ela.

Saíram da loja. Ela, feliz, bonita, ancorada ao seu braço, sorria como um navio que chega a bom porto. Ele, feliz também, bonito por estar com ela, desligou subtilmente o pequeno botão do aparelho. O que ouvia chegava perfeitamente. Ela era, na realidade, tudo aquilo de que os seus sentidos precisavam.

1 comentário:

Mónica disse...

Fué leer esta historia y vi a mis padres padres plasmados en ella . Sobre todo la adoración que él tiene por ella .Besos .