quinta-feira, março 25, 2010

Dentes

Aguardava estoicamente sentada na sala de espera do consultório do dentista.

O Sr. Doutor vai já atender.

Tentou responder, amável, mas as palavras embrulharam-se numa onda gigante e descontrolada que a atingiu em cheio nas gengivas inchadas, inflamadas, provocando um uivo rouco de dor. Esticou então os lábios num ensaio de sorriso mas só conseguiu compor um aspecto ainda mais ridículo à face já desfigurada, já lamentável.

Uma mão em cima da outra sobre o colo, o queixo esquecido no peito, como quem medita, como quem reza, como quem se prepara para o combate final.

O Sr. Doutor manda entrar.

Ao abrir a porta chegou-lhe aquele cheiro estranho (uma mistura de flúor e pó de dentes), que a enjoou menos do que a animou. Sentou-se na cadeira velha, cansada, com a pele já gasta de anos e anos de dores bucais com habilidades contorcionistas. A sua voz determinada sobrepôs-se ao estrépito do gingar da cadeira.

Quero que me arranque todos os dentes.

Assim. Sem mais. O dentista, mais velho e mais cansado que a cadeira velha e cansada do seu consultório, não fez perguntas. Segurou o alicate com a determinação do hábito e, um a um, arrancou todos os dentes da mulher.

Primeiro foram os incisivos. Os que começaram a doer da primeira vez que lhe partiram o coração, há tanto tempo que havia deixado de o contar.

Depois os caninos, que lhe acompanharam a dor de alma de ver a mãe numa cama, débil, senil, sem a reconhecer a ela nem a si própria.

Por fim, o dentista, extenuado, extraiu-lhe os molares. Uma dor quase insignificante que a seguiu como sombra quando perdeu o filho.

Quando saiu, sem dentes, tinha o sorriso mais feliz do mundo.

5 comentários:

Jessica de Sá disse...

Não te conhecia este tom mas ficam-te bem os sentimentos contados a sangue frio.*

Unknown disse...

Muito muito bom, é um prazer ler todas as palavras deste blog ;)

Alice Barcellos disse...

Olá Sara, desde que descobri o teu blogue tornei-me leitora assídua. Gosto muito dos teus textos e da forma como escreves.

Cláudia disse...

Nunca tive dores nos dentes. Mas, de repente, percebi que tinha o sorriso amarelo...

Sarushka disse...

A ver se mantenho os meus dentinhos... **