O tempo levou-lhe cabelo, flexibilidade, energia. O tempo levou-lhe a juventude e trouxe-lhe a velhice. Trouxe-lhe dores e rugas e sinais.
Aos 80, falava muito pouco ou nada. Eram mais as vezes em que a boca se abria para entrar comida do que para sair palavra. Naquela viagem de comboio de três horas, com a irmã (quase tão velha) e a neta (ainda tão jovem), falou unicamente para perguntar em que estação deveriam sair.
Assim era desde que se tornara viúva. Toda a família atribuía o silêncio ao trauma da perda. Mas não era assim.
És um inútil.
Assim dissera ao marido.
És um inútil.
Na sua cabeça as palavras repetiam-se até à erosão, até deixarem de ser palavras.
És um inútil.
Foram as palavras inúteis de uma inútil discussão. Foram as últimas palavras que o marido lhe ouviu.
Não extraiu dali desgosto, só uma lição. Agora media as palavras. Com regra e esquadro mental, escrutinava-as com métodos alquimistas. Só as verdadeiras passavam a barreira do silêncio. Só as que faziam sentido.
O tempo levou-lhe juventude, mas ainda não lhe levou a memória.
3 comentários:
Como sempre.... GENIAL
Quando estamos atentos ao que se passa à nossa volta vemos que as coisas do dia-a-dia podem ser transformadas em coisas maravilhosas por quem as sabe moldar como tu *
Este es tan real como la vida misma. Me gustó tanto que me dejó sin palabras. Besos.
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