segunda-feira, setembro 27, 2010

Mesa

Passava pouco do meio-dia quando a senhora entrou. Apesar da grande disponibilidade de mesas, não parou para esperar que alguém a encaminhasse nem pareceu dedicar qualquer pensamento à escolha do sítio ideal. Sentou-se na mesa mais próxima da porta, como quem não tem tempo a perder em inúteis viagens entre porta e mesa, mesa e porta. Quando a empregada de mesa se aproximou para deixar o menu, não a deixou sequer pousá-lo e, sem soerguer o olhar,

Quero empadão de carne, por favor.

A rapariga, desequilibrada entre a força da decisão e a estranheza do pedido, fez da educação malabarismo.

Lamento muito, minha senhora, mas empadão não temos. Mas posso recomendar... 

A frase ficou suspensa, suspenso o som, a expressão, a admiração da rapariga.

Quero empadão de carne, por favor. 

Sem sobressalto, sem o costumado tom azedo da reclamação, da sugestão obrigatória, da opinião desnecessária. Com o mesmo tom sereno de quem, pela primeira vez, materializa em palavras o prato que leva na imaginação.

Vou ver com a cozinha o que se pode fazer.

E foi. A bandeja encheu-se de pratos para outras bocas entretanto chegadas e a expressão de desprezo do cozinheiro face ao pedido especial pareceu ditar o destino da refeição da senhora. Enquanto se encaminhava para a mesa, treinando, a cada passo, a melhor tradução para a expressão do cozinheiro, observou-a. A senhora teria já alguma idade mas era uma idade cuidada. Os lábios pintados num tom discreto, o colar redondo pousado sobre o peito tapado, o cabelo avolumado de rolos e secadores.

Ainda bem que alguém me atende. Quero empadão de carne, por favor.

O pasmo da rapariga não terá durado mais do que alguns segundos, ainda que longos.

Olhe minha senhora, eu não posso ser mais rápida do que sou e, como já lhe disse, não temos empadão e o chefe de cozinha também não o pode estar a fazer agora, entendeu?

Não terá entendido.

Quero empadão de carne, por favor. 

A paciência da rapariga esgotara-se e a sua indignação crescia dentro da efémera bolha da educação quando uma exclamação a interrompeu.

Mãe! Andamos todos à sua procura!

E, reparando na rapariga,

Eu peço desculpa. A minha mãe tem um problema... 

Apontando discretamente a própria cabeça, entristecendo o olhar, esboçou um hercúleo sorriso. Uma sensação quente percorreu a memória da rapariga.


Não tem problema nenhum. Se puder esperar, eu reponho o segundo prato na mesa e, enquanto conversam, fica pronto o empadão.

3 comentários:

Jessica de Sá disse...

Bonito.

Mónica disse...

Muy emotivo . Desgraciadamente esta historia también ocurre en la realidad. Besos .

Mãe disse...

Adoro-te, nunca deixes de escrever.